BOA VISTA (RR) – Localizada no extremo Norte do País, Boa Vista (RR) completa 135 anos neste dia 9 de julho. Em meio às comemorações, há um grupo que se tornou quase invisível na cidade, mesmo vivendo nas principais ruas da capital: os indígenas Yanomami, que se deslocam de suas comunidades para buscar assistência, mas são levados a sobreviver nas ruas, sem moradia, alimentação ou qualquer outro tipo de auxílio, conforme mostram vídeos obtidos pela CENARIUM.
Quem passa diariamente pelo Viaduto Pery Lago consegue observar esses grupos distribuídos na Feira do Produtor, na Zona Oeste da capital roraimense, local que se tornou moradia para os indígenas em situação de vulnerabilidade na cidade. Eles atam redes em calçadas e em estruturas que não são utilizadas na feira.
Vídeos mostram mães e filhos deitados em calçadas em plena luz do dia. As crianças aparentam estar malnutridas e algumas ficam sem roupas, expostas a quem passa pelo local, seja a pé ou nos veículos. Elas são acompanhadas por mulheres que parecem compartilhar da mesma situação.
Em outro vídeo, é possível ver que os indígenas, entre eles crianças, estão concentrados em lixões que ficam na feira ao ar livre. Ali mesmo eles atam as redes e fazem as refeições com restos de comida e outros alimentos, muitas vezes repetidos. É possível ver uma pessoa seminua jogada no chão sujo, enquanto do lado de dentro a feira funciona normalmente e, do lado de fora, carros passam pela avenida.
Uma comerciante, que preferiu não ser identificada, afirmou à reportagem que a situação se tornou parte da rotina do local e não é claro quais são os órgãos responsáveis por lidar com a situação. “Ninguém sabe se realmente há algum órgão responsável, porque eles acabam gerando muitos transtornos para quem tem comércio. Outra coisa é a situação do mau cheiro, sujeira e as crianças desnutridas”, relatou.
O que diz o MPF e a Funai
Segundo o Ministério Público Federal (MPF), o órgão já promoveu audiências e reuniões para entender o motivo da migração pendular e permanência de indígenas na capital, que ocorre, em sua maioria, pelo uso abusivo de álcool.
Após algumas recomendações, o tema virou objeto de Ação Civil Pública, já julgada procedente e cumprida, na qual foi determinada a construção de uma base no território de origem desses povos e de um posto de saúde para o tratamento de alcoolemia e outras doenças relacionadas ao contato desordenado com a sociedade.
“O MPF atuou em parceria com conselhos tutelares e outros órgãos dos governos federal, estadual e municipal para o desenvolvimento de protocolos de abordagem, atendimento e direcionamento de indivíduos nessa situação. Tais ações foram capazes de reduzir, em grande parte, esse fenômeno que, no entanto, permanece ocorrendo pela liberdade de ir e vir dos indígenas”, afirmou o órgão.

A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) informou que tem conhecimento da presença desses grupos de indígenas e que a Feira do Produtor é um local de trânsito para compra de ferramentas e insumos, venda de produtos, visita a parentes, acesso a serviços como saques bancários e benefícios sociais, entre outros.
“O direito à locomoção não pode e não deve ser violado. Como já esclarecido anteriormente, a Funai realiza diversas ações para que, quando seja de sua vontade, esses grupos retornem às comunidades, e, inclusive, para convencê-los a voltar, dadas as situações de risco a que ficam expostos. Quando, ainda assim, optam por permanecer na cidade, as articulações interinstitucionais com o Estado e os municípios têm como objetivo fortalecer sua segurança e proteger sua saúde e bem-estar social”, afirmou o órgão.
A Funai informou, ainda, que tem se articulado com o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) e com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) para definir um fluxo de atendimento aos grupos indígenas em trânsito na cidade.
“Em Boa Vista, as articulações com as redes de proteção social e de saúde são contínuas, assim como o atendimento diário prestado pelas assistentes sociais contratadas pelo órgão indigenista. Essas profissionais distribuem diariamente marmitas para garantir a segurança alimentar dos grupos presentes e atendem também a outras demandas emergenciais”, informou.

Para o sociólogo Linoberg Almeida, o incômodo que algumas pessoas sentem ao ver indivíduos em situação de rua nas cidades não vem dessas pessoas em si, mas é amplificado por discursos de ódio presentes na opinião pública, ou seja, por falas que desumanizam e afastam essas pessoas do convívio social. Ele afirma que é preciso gerar mais debates com a finalidade de encontrar soluções para retirar os indígenas da vulnerabilidade.
“O que gera desconforto visual na cidade é, muitas vezes, o discurso de ódio na opinião pública, estimulando barreiras e certo distanciamento entre pessoas em situação de rua e a população em geral, alimentando desconhecimento, preconceitos, desprezo, malevolência e aversão. Quando são indígenas, então, soma-se a visão estereotipada do imaginário discriminatório. Sinceramente, temos que ampliar diálogos e audiências, mas também ir além delas. Políticos, pesquisadores, sociedade civil, empresários e povos indígenas precisam buscar firmar compromissos e prestar contas deles”, apontou.
Saúde Indígena
A Terra Indígena (TI) Yanomami compreende 10 milhões de hectares, sendo o maior território indígena do Brasil, entre os estados do Amazonas e Roraima. São 33,3 mil indígenas vivendo na região, divididos entre 399 comunidades.
Neste ano, o Boletim do Centro de Operações de Emergências (COE) Yanomami revelou que o número de mortes de indígenas reduziu 21% em 2024, na comparação com o ano anterior, quando a União reconheceu uma grave crise sanitária no território demarcado. Segundo dados do COE, em 2023 foram registradas 428 mortes, 91 a mais que em 2024, e a principal causa dos óbitos foi infecções respiratórias agudas (IRA), seguidas de desnutrição e malária.

Diante do cenário de desnutrição das crianças indígenas na capital Boa Vista, os números do Boletim revelam que, em 2024, 35 pessoas morreram por essa causa, um número menor que as 44 mortes de 2023. Nesse cenário nutricional, o acompanhamento de crianças menores de 5 anos, feito pela Vigilância Alimentar e Nutricional, aumentou, o que gerou melhorias nos quadros de saúde dessas pacientes.

A precarização dos serviços e sistemas de saúde indígena até 2022 resultou em situação de emergência devido à desassistência no Território Indígena Yanomami, levando à subnotificação expressiva de doenças e óbitos, informou o Ministério da Saúde no último estudo publicado em 5 de maio deste ano.
Quando foi declarada a emergência de saúde no território Yanomami, existiam apenas 690 profissionais contratados. Esse número aumentou 158%, o que garante, hoje, 1,7 mil profissionais atuando em escala de trabalho dentro do território Yanomami e nas Casas de Saúde Indígenas (Casai).
Já o município de Boa Vista segue as características da Política de Saúde Indígena, conforme informou a prefeitura da capital. “Com atendimento diferenciado, respeitando as particularidades culturais, sociais e territoriais de cada povo indígena. No Hospital da Criança Santo Antônio, também é oferecida alimentação de acordo com os hábitos e costumes de cada etnia, além de enfermaria com redário e ambiente adequado para melhor acomodação. Informa-se que, mensalmente, são atendidas em média 410 crianças, das quais 125 são internadas”, declarou.





