Ângelo Pankararé foi assassinado na madrugada de 26 de dezembro de 1979, menos de dez dias após a fundação da Anaí – então Anaí-Bahia – a 17 de dezembro daquele ano.
Fomos todos brutalmente surpreendidos, naquele recesso natalino, pela notícia, cujo impacto viria a marcar para sempre os nossos então jovens corações e mentes indigenistas. Mais que isso, o fato colocou-nos diante do grande desafio de, em uma Anaí ainda no berçário, tentarmos enfrentar com competência e serenidade aquele nosso duro “batismo de fogo” institucional. O assassinato de Ângelo foi assim um marco na fundação da Anaí, ao ensejar o nosso primeiro esforço institucional engajado de produção documental e de reflexão política, antropológica e indigenista.
Um dia após a morte do líder indígena, soltamos uma primeira Nota à Imprensa e, já na semana seguinte, a primeira de 1980, o “Boletim nº 1 da Anaí-Bahia”, que tinha como tema único o assassinato de Ângelo e a denúncia da situação de preconceito e perseguições aos Pankararé por políticos e outros poderosos do município de Glória, assim como do mais absoluto descaso para com os seus pleitos e pedidos de socorro da parte da Funai e autoridades da ditadura.
Esse boletim – o documento 1″ da Anaí – nada mais era que uma folha ofício dobrada em duas, para fazer quatro páginas, impressas na típica tinta azul dos mimeógrafos de então. Tinha, na capa, o belíssimo desenho de um Praiá, por Orlando Ribeiro, e textos de Maria Rosário Carvalho – uma de nossas primeiras e mais assíduas diretoras desde então – e Carlos Caroso – primeiro antropólogo a estudar os Pankararé. Foi diagramado e rodado em tempo recorde – não registramos onde – graças ao trabalho e às mediações da historiadora Beth Capinam; sendo Beth, Orlando e Rosário três dos nossos importantes associados/as fundadores/as.
Muito do que produzimos de informação política indigenista e mesmo de reflexão antropológica naquelas primeiras semanas que se seguiram ao assassinato de Ângelo veio a contribuir também com outras publicações, destacadamente o “Caderno número 2 da Comissão Pró-Índio de São Paulo”, que teve como tema “A Questão da Terra” e que tem, em sua folha de rosto, fotos de Ângelo Pankararé e de Ângelo Kretã, cacique caingangue também assassinado logo em seguida, em janeiro de 1980, no Paraná. Esse Caderno, na verdade um pequeno livro, foi lançado durante o encontro “Índios: direitos históricos”, em um evento no convento dos dominicanos, com a presença de alguns dos filhos e netos de Ângelo, residentes na aldeia do Brejo do Burgo ou ali mesmo em São Paulo.
Àquela época crescia muito a mobilização de povos indígenas no Brasil e no Nordeste pelo reconhecimento de seus direitos, inclusive da parte de povos até então ainda não “reconhecidos” pelo estado, como os Pankararé.
Ângelo havia, como muitos Pankararés ontem e hoje, passado parte de sua vida trabalhando como operário em São Paulo, contingência a que são levados – como outros sertanejos nordestinos – pela perda de suas terras e total ausência de políticas públicas e de reconhecimento de seus direitos.
Quando retornou à sua comunidade no Brejo do Burgo, Ângelo decidiu liderar a luta do seu povo pelo “reconhecimento” oficial e pelo resgate de suas terras invadidas por posseiros e políticos locais. Foi escolhido como cacique, estimulou o fortalecimento dos rituais tradicionais, como o dos Praiá, e passou a investir os recursos que duramente acumulara, como trabalhador em São Paulo, na realização de viagens e contatos com agentes do governo e possíveis aliados, levando pela primeira vez a círculos mais amplos a notícia da existência dos Pankararé, suas demandas e reivindicações.
Com isso passou, também, a receber muitas ameaças de morte, do que fez corajosas denúncias que jamais foram tomadas em consideração pelos donos do poder.
Hoje, os Pankararé são um povo forte e organizado, e como resultado da luta inspirada por Ângelo, têm suas Terras demarcadas e homologadas.
Em dezembro de 2009, tanto a fundação da Anaí quanto o assassinato de Ângelo Pankararé completaram trinta anos, e o nosso Pinaíndios, que completou então um ano de existência, não poderia deixar de se motivar pela memória de Ângelo Pereira Xavier, patrono do Aiapan.