[RESUMO] Celebração, no terreiro a 14 km da aldeia Brejo do Burgo (BA), surgiu para reviver raízes espirituais do povo pankararé em meio a conflitos com posseiros contra a demarcação do território. Regada a jurema-preta, a comemoração tem seu ponto alto na chegada dos praiás, figuras imponentes cobertas de fibras de caroá que parecem flutuar sobre a areia do sertão.
O café da manhã na cozinha coletiva do terreiro acabava de ganhar o quitute de tripas fritas quando soaram silvos. Eram gaitas anunciando a chegada da comitiva de terra indígena Brejo do Burgo. Fogos de artifício começaram a espocar, e todos deixaram a comida para se dirigir ao pórtico da área sagrada dos pankararé.
Começava a Festa da Ciência do Amaro, aberta para o público desde 1995. Liderando o grupo vindo da aldeia a 14 km dali despontava Edézia Maria da Conceição Feitoza, 69, a “Mãe Véia” do terreiro, também conhecida como Dona Deza, casada com o cacique Afonso Enéas, 74.
A líder das mulheres da etnia foi recebida pelos integrantes desse povo indígena da Bahia nos portões azuis sob arco de alvenaria caiada, com uma cruz no alto, no qual se lia “Deus abençoe a todos”. Boa parte deles vestidos com os saiotes cerimoniais de caroá, estavam organizados em duas filas a partir da entrada enfeitada com folhas de palmeiras.
O assobio das gaitas, a meio caminho entre apitos e flautas, deu lugar ao chiado envolvente dos maracás. Esses instrumentos feitos com cabaça sempre acompanham as toantes, canções de poucos versos puxados por uma pessoa e repetidos por todas as outras. Um exemplo:
Na minha ciência tem muitos encantados pra brincar
Na minha ciência tem muitos encantados pra brincar
Com a força da Jurema e a força do juremá
Com a força da Jurema e a força do juremá
No terreiro do Amaro nós iremos festejar
Com os Encantados das matas e do meu pé de jatobá.
Não se trata de qualquer jatobá, mas da árvore sagrada que deu origem ao terreiro do Amaro e serve de morada para o Caboclo Aboiador. Esse encantado (entidade, espírito) ocupa um lugar central no panteão pankararé.
Em meio à caatinga estorricada, a copa sempre verde do jatobá cobre a área cercada com uns 400 m2. Nela só se entra pela construção circular chamada de Poró dos Homens, e apenas pessoas desse sexo e maiores de 16 anos podem adentrar o espaço.
Ali se reuniram os homens que dançariam à noite paramentados como praiás, vestimenta feita com fibras de caroá que os cobre da cabeça aos pés e representa as forças encantadas da mata. Sob um pequeno telheiro estava guardado o vinho da jurema, sacramento dos pankararés para facilitar a comunicação com encantados.
“A jurema é aquilo que Nosso Senhor benzeu para a população beber”, respondeu o cacique vagamente, após alguns segundos de silêncio, à pergunta sobre o papel da bebida no ritual. Limitou-se a explicar que o vinho só pode ser feito com a jurema-de-caboclo, variedade sem espinhos da jurema-preta (Mimosa tenuiflora).
A entrecasca das raízes da jurema-preta contém N,N-dimetiltriptamina (DMT), a mesma substância psicodélica que ocasiona as mirações (visões) de outra bebida sacramental, a ayahuasca, chá empregado por dezenas de povos da floresta amazônica. No começo do século 20, seu uso deu origem a religiões urbanas como Santo Daime, União do Vegetal (UDV) e Barquinha.
O vinho da jurema, árvore pioneira de porte médio comum na caatinga, é um elemento comum a várias etnias do sertão nordestino. São indígenas muito diferentes dos povos da Amazônia, pois não correspondem ao estereótipo de cabelos lisos, olhos amendoados e adornos de penas (embora em festividades como a do Amaro haja cocares à vista, alguns feitos de palha).
Trata-se de uma população cabocla, miscigenada, cujos costumes foram quase inteiramente apagados no período colonial, com os aldeamentos forçados dos jesuítas e outras ordens católicas. A maioria das línguas originais se extinguiu, à exceção dos fulni-ô, que ainda falam o idioma iatê nas cercanias de Águas Belas (PE).
A invisibilidade era um expediente de sobrevivência, que se manifesta ainda hoje no segredo em torno da chamada “ciência”, o conjunto de cosmologia, crenças e práticas que compõem a espiritualidade desses povos do sertão. Daí a relutância de Afonso Enéas, por exemplo, em detalhar o preparo do vinho da jurema.
“Fui muito perseguido”, contou o cacique. Chegou a ter sua roça de feijão e milho queimada, e as cercas, derrubadas. Os conflitos envolviam posseiros, até pessoas de seu povo que não queriam ser identificadas como indígenas, quando se iniciaram os trabalhos de demarcação do território pela Funai, nos anos 1980.
Hoje estão homologados para os 2.400 pankararés um total de 47,5 mil hectares (475 km2). Outros 13 mil hectares, onde está a aldeia Cerquinha, chegaram a ser demarcados, mas a homologação pelo Ministério da Justiça nunca saiu.
O território fica no município de Glória (BA), perto de Paulo Afonso, junto à margem direita do rio São Francisco. Com a construção da hidrelétrica de Itaparica, muita gente foi retirada de suas terras e realocada, inclusive na área indígena.
Processo semelhante acompanhou a criação da Estação Ecológica Raso da Catarina, refúgio da arara-azul-de-lear, ameaçada de extinção. A região ficou famosa também pelas andanças do bando de Lampião, que fazia acampamentos por ali.
Em 1979, durante a luta pela demarcação, o então cacique Ângelo Pereira Xavier foi assassinado numa emboscada, conta Elaine Patrícia de Sousa Oliveira, nora de Dona Deza, na dissertação de mestrado “A Mulher na Ciência do Amaro”, defendida em 31 de agosto na Universidade do Estado da Bahia.
Anos depois, Afonso assumiria a liderança e concluiria o processo de reconhecimento do território pankararé. Os conflitos continuavam, dificultando a realização de rituais que sobreviviam só em forma oral, como as toantes que a Mãe Véia dos praiás, Dona Deza, cantava desde menina.
Andando pela caatinga com o gado, criado de modo extensivo no sistema fundo de pasto, Afonso um dia se viu vencido pelo sol causticante quando o rebanho estourou. Encontrou sombra então sob um pé de jatobá, única vegetação com folhas na secura a perder de vista, e parou para descansar com a cabeça apoiada no tronco.
O gado retornou sozinho e começou a lamber seus pés. Ali o cacique viveu a primeira aparição do Caboclo Aboiador, centro da Festa do Amaro que seu povo passou a organizar, naquele mesmo local, a cada último sábado de outubro. “Toda força que a gente teve [na luta pela demarcação] foi daqui, do Amaro”, diz o cacique.
Para os indígenas do Nordeste, vivenciar o contato com os encantados não depende de efeito psicodélico. Desde o século 18, porém, a crônica registra a jurema como produtora de alucinações. Não se descarta que algumas receitas incluam outras fontes de inibidores, como maracujás silvestres.
A comunhão com os espíritos da natureza surge do ritual como um todo: torés, maracás, toantes, fumaça dos campiôs (cachimbos cônicos), trajes de caroá, orações, penitências, o portento do jatobá, a celebração das raízes culturais e a partilha de refeições oferecidas de graça pelos organizadores da festa, com muita carne, cuscuz, arroz e feijão.
O enlevo era marca evidente no rosto de todos, sem economia de sorrisos. As crianças, em especial, pareciam tomadas de um entusiasmo orgulhoso por envergar seus saiotes de caroá e maracás enfiados nos aiós (bolsas de fibra).
No final da tarde, teve lugar longa procissão pela caatinga. Liderando o cortejo ia um andor com a imagem do Caboclo Aboiador e outras figuras, sustentado por duplas que se revezavam, inclusive mulheres como Patrícia.
O destino da procissão era o cruzeiro da colina em frente, dedicado a Maria Mulambeira, outra entidade marcante do panteão pankararé. A caminhada sobre areia fofa pelando só comportou paradas em algumas árvores, como umbuzeiros, reverenciadas pelos indígenas que lhes atavam fitas coloridas.
Sob a cruz caiada, onde se liam em azul as palavras “Jesus, Maria e José”, cacique Afonso sentou junto do andor. De pé a seu lado, Patrícia erguia o maracá para acompanhar as toantes e orações, em evidente êxtase. Várias pessoas buscavam nichos entre as rochas para acender velas e abrigá-las do vento que varria a caatinga.
A descida de retorno ao terreiro do Amaro se deu por outro caminho, mais curto e íngreme. O percurso todo, na percepção dos indígenas, se assemelha à tradicional representação oval do rosário católico.
O sol se pôs durante a caminhada de volta, tingindo de tons avermelhados a mata branca, um emaranhado de troncos e galhos sem folhas. No lado oposto do poente nasceu a lua cheia, mas desfalcada de um naco no flanco direito —um eclipse lunar parcial, para completar.
Na chegada à sede da festa, um bando de meninos aprendizes de praiás saíram do Poró das Crianças para sua apresentação. Dançaram e cantaram no lusco-fusco, muito aplaudidos em seu esforço de dar continuidade à tradição.
Os verdadeiros praiás apareceriam só após o jantar. Ouviram-se de novo os apitos de gaitas, vindos da mata à esquerda do jatobá e do Poró dos Homens. Baixaram talvez duas dezenas de figuras fantasmagóricas, enchendo o terreiro, iluminados somente pela luz da Lua e de fogueiras.
Com o “folguedo” (traje) a lhes ocultar os pés, seus passos rápidos pareciam fazer com que deslizassem sobre a areia. A máscara com dois pequenos orifícios para os olhos vai encimada por um adorno circular de penas, tornando as figuras ainda mais imponentes. Capas coloridas sobre as costas traziam cruzes brancas, reminiscentes de cruzados medievais.
Uma fileira de mulheres, Dona Deza ao centro, puxava os toantes para os praiás dançarem. Após algumas evoluções em fila, algumas acompanhadas de mulheres, eles se reuniam em círculos e emitiam gritos meio grunhidos, produzindo um ruído visceral uníssono —huh! huh!— que ressoava no peito de cada um.
Foi o ponto alto da festa. Dezenas, talvez centenas de rojões foram disparados ao longo de todo o festejo e entraram pela noite. Seguiu-se um toré, com a participação de todos.
Aos poucos os visitantes, entre eles uma dúzia de estudantes da Universidade Federal do Vale do São Francisco, começaram a se recolher para as barracas do acampamento à sombra do jatobá, do lado de fora da cerca da área sagrada. Estavam exaustos, pouco acostumados com a caminhada na areia sob o sol da caatinga.
Na manhã seguinte, às 8h30, chegou o trator puxando dois reboques para levá-los de volta a Brejo do Burgo, onde tomariam o ônibus de volta para Petrolina (PE). Uma carreta levou todas as bagagens, outra tinha tábuas fazendo as vezes de bancos.
Apesar do desconforto, da poeira e do sol abrasador no trajeto de quase uma hora, ninguém reclamou. Selfies e alegria incomum dominavam o ambiente na carroceria. Uma estudante perguntou: o que precisamos fazer para voltar no ano que vem?