Aprovada pelo Congresso Nacional em 2023 e alvo de uma longa e intensa batalha judicial, a tese do marco temporal continua rendendo debates e disputas no Legislativo. Uma nova proposta da bancada ruralista apresentada na última terça-feira (22) busca agora alterar a norma que regulamentou a tese para dificultar procedimentos de demarcação de terras indígenas e regulamentar o pagamento de indenizações a fazendeiros ocupantes de áreas que estejam com o processo demarcatório inconcluso.
A iniciativa foi formalizada por meio do Projeto de Lei (PL) 4039/2024, assinado por oito deputados da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), entre eles o presidente do grupo, Pedro Lupion (PP-PR). A proposta ataca as ações de retomada, práticas em que as comunidades indígenas buscam reaver o domínio de áreas de origem ancestral e que tenham sido tomadas indevidamente por terceiros.
O texto do PL altera o artigo 9º da Lei 14.721/2023, que sintetiza a ideia do marco temporal, segundo a qual os povos indígenas só têm direito a terras que já estivessem ocupando ou disputando em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal. Ao acrescentar trechos à norma, o PL prevê que o poder público deve indenizar “o não indígena proprietário ou possuidor da terra esbulhada” quando a área for alvo de “esbulho” [invasão ou ocupação] por parte de indígenas.
A indenização abarca “os danos e prejuízos materiais e imateriais, bem como os lucros cessantes decorrentes da impossibilidade de realização do preparo, do plantio e da colheita”, propõe outro trecho do projeto de lei. A proposta fixa ainda que, “enquanto permanecer a turbação ou o esbulho possessório ou a ocupação sem respeito a este artigo, serão suspensos todos os atos relativos ao procedimento demarcatório”.
Reação
O texto do PL alega, em sua justificativa, que o Brasil estaria vivendo “um cenário de completo desrespeito aos direitos fundamentais de produtores rurais”. “Ao menos desde o final do ano de 2023 há um cenário de completo desrespeito ao direito de propriedade, com invasões de propriedade ocorrendo em diversos entes federados com base em uma premissa de ‘direito de retomada’ dos indígenas. O cenário de invasão de propriedade, para além do prejuízo imediato, tolhe o produtor de auferir os lucros da sua atividade econômica e pode lhe gerar prejuízos que ultrapassam a mera retirada da área”, afirmam os autores.
Procurada pelo Brasil de Fato para comentar o assunto, a coordenadora da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas no Congresso Nacional, deputada Célia Xakriabá (Psol-MG), disse considerar a iniciativa da FPA “afrontosa”. “É um retrocesso às demarcações, tendo muitas implicações gravíssimas por conta da sobreposição do direito à propriedade [diante dos direitos territoriais dos indígenas], que é uma forma de criminalizar áreas ainda não demarcadas, e nós sabemos que ainda há um déficit muito grande de demarcações nas regiões Sudeste e Nordeste”, criticou a parlamentar, que está em viagem à Colômbia para participar da Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica, a “COP 16 da Biodiversidade”.
A deputada ressaltou que a discussão sobre indenização de terras nuas – conceito ligado ao preço de mercado de terras em 1º de janeiro de um determinado ano – exige estudos para avaliação da situação de cada área, o que inclui a verificação sobre o histórico do local, sobre a presença ou não de grileiros ali estabelecidos, origem da emissão de documentos sobre a terra, etc.
Para Xakriabá, o espaço de discussão do assunto não deveria ser um projeto de lei, e sim a mesa de negociação hoje em andamento no Supremo Tribunal Federal (STF) para discutir a tese do marco temporal. A deputada diz interpretar o PL como uma tentativa da FPA de “atravessar” o debate para pressionar politicamente a Corte e os demais órgãos representados na mesa, que reúne interlocutores do governo federal, da sociedade civil e dos próprios indígenas.
A psolista disse ainda que a FPA busca vincular erroneamente os processos de demarcação à ideia de invasão de terras pelos indígenas para “tentar tirar grande vantagem no processo indenizatório”. “Enquanto a mesa de conciliação tenta fazer proposições para avançar e pensar soluções para as demarcações, o Congresso tenta mais uma vez editar medidas, protocolar PLs contrários, o que é uma afronta. Não é possível pensar em avançar quando o Congresso tentar criar outros meios legislativos [para dificultar]”, disse Xakriabá, ao citar o PL 4039/2024 e a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n.º 48/2023, que busca pôr fim à disputa jurídica em torno do marco temporal por meio da constitucionalização da tese.
O PL 4039/2024 surge na mesma semana em que o Supremo Tribunal Federal (STF) analisa pontos da Lei 14.721/2023, que sintetiza a ideia do marco temporal. Na quarta (23), a Corte começou a debater um trecho da norma que define critérios para o entendimento do que são terras ocupadas por indígenas. A análise se situa no contexto de tramitação de cinco ações judiciais relacionadas à tese, sendo quatro que questionam a validade da nova legislação e uma que pede que o STF a declare como constitucional. A decisão que vier a ser tomada tende a impactar o contexto jurídico dos debates sobre as demarcações, hoje alvo de grande insegurança legal por conta do marco temporal.
O PL 4039/2024 vem à tona na mesma semana em que o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, assinou sete portarias que demarcam oficialmente Terras Indígenas (Tis). Foram homologadas na quarta (23) as TIs Jaraguá, Pindoty/Araça-Mirim, Peguaoty, Djaiko-aty, Amba Porã, Tapy’i/Rio Branquinho e Guaviraty, todas localizadas no interior de São Paulo.
Outro aspecto localizado no mesmo cenário de apresentação do PL é o acordo – mediado pelo STF e firmado no mês passado – entre a TI Ñanderu Marangatu e fazendeiros da região de Antônio João (MS). A tratativa, que encerrou uma disputa de décadas, terminou com o acerto de que o poder público deverá indenizar os fazendeiros em R$ 146 milhões aos cofres públicos. O acordo gerou preocupação em entidades pró-indígenas, segundo as quais o trâmite cria um precedente de caráter escorregadio para o Estado brasileiro lidar com casos de demarcação de povos tradicionais.
Agora, diante do atual contexto, o PL 4039/2024 tende a energizar a disputa em torno da tese do marco temporal no Legislativo, ao mesmo tempo em que o assunto segue sob interrogações no âmbito jurídico. A proposta está na mesa diretora da Câmara, à qual cabe o despacho de encaminhamento do texto, que pode ser enviado para a análise de comissões temáticas da Casa ou ser alvo de pedido de urgência que o leve direto ao plenário.