Manaus (AM) – Em um dia trágico e emblemático como é este 5 de junho, indígenas, militantes de movimentos sociais, funcionários públicos, defensores do meio ambiente e dos direitos humanos cobram providências do poder público para seja feita justiça em relação aos assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips. O crime completa um ano neste Dia Mundial do Meio Ambiente e diversas manifestações e caminhadas são realizadas em várias regiões do Brasil.
Os dois foram mortos em um crime ainda não completamente explicado na região do Vale do Javari, em Atalaia do Norte, no Amazonas, na reta final do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), considerado um período tenebroso especialmente para os povos indígenas e quilombolas.
Nesta data simbólica, cartazes e vozes são erguidos para lembrar que o Estado brasileiro tem a obrigação de fazer justiça no caso Bruno e Dom, além de garantir que crimes como esse não ocorram mais. Os atos foram realizados em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, Campinas, Belém, Salvador e Amazonas, incluindo o próprio município Atalaia do Norte. Também está prevista manifestação em Londres, na Inglaterra.
“É um dia de muita dor para quem acompanha e investiga os assassinatos de Dom e Bruno. Nós, jornalistas da linha de frente, sentimos muito porque estamos sempre cobrindo a Amazônia, a violação de direitos, as ameaças aos povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas. É preciso que haja justiça nesse caso”, afirmou a jornalista Kátia Brasil, uma das fundadoras da Amazônia Real.
Kátia participou, nesta segunda-feira (05), de uma entrevista coletiva que reuniu representantes de várias organizações de defesa da liberdade de expressão e imprensa no Instituto Vladimir Herzog, em São Paulo.
Bruno e Dom desapareceram enquanto navegavam no rio Itacoaí, nos limites da Terra Indígena Vale do Javari, no estado do Amazonas, na região da tríplice fronteira do Brasil com o Peru e a Colômbia. Os corpos foram encontrados dez dias depois, esquartejados, queimados e escondidos na floresta.
“Desde então, as respostas que o Estado brasileiro deu a este bárbaro crime e para a situação de extrema insegurança em que vivem povos indígenas, defensores de direitos humanos e comunicadores que atuam na Amazônia é insuficiente”, diz nota divulgada pelas organizações que participaram do ato no Instituto Vladimir Herzog. “A não repetição de casos como o de Dom e Bruno exige que se nomeie e responsabilize todos aqueles que se beneficiaram de suas mortes e que têm interesse em silenciar os defensores que lutam pela proteção do território do Vale do Javari”.
As organizações lembraram também que pelo menos 11 defensores e comunicadores/as indígenas seguem sob risco, apesar de terem sido incluídos no Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH). As medidas oferecidas pelo Estado brasileiro não são capazes de responder às ameaças e à violência na Amazônia.
A nota é assinada pela Artigo 19 Brasil e América do Sul, Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Associação de Jornalistas de Educação (Jeduca), Associação de Jornalismo Digital (Ajor), Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), Instituto Vladimir Herzog, Instituto Palavra Aberta, Repórteres Sem Fronteiras (RSF) e Tornavoz.
Para o jornalista Artur Romeu, diretor da Repórteres Sem Fronteiras no Brasil, o crime é a manifestação mais brutal de censura e um atentado contra a liberdade de imprensa, o meio ambiente e a democracia no país. “Perdemos todos quando as vozes que nos alertam sobre a destruição da floresta e de seus povos são silenciadas. É um atentado direto contra o direito à informação de toda a sociedade brasileira”, afirmou.
De acordo com ele, celebrar a memória de Bruno e Dom é lembrar a importância que o jornalismo comprometido com as causas socioambientais ocupa na defesa da agenda climática. “Jornalistas locais reportam sobre conflitos e dinâmicas de interesse global em situação de vulnerabilidade e condições muitas vezes precárias”, destacou.
Entre julho de 2022 e maio de 2023 foram registrados na Amazônia 62 casos de ataques contra jornalistas – entre as vítimas, 40 são homens, 18 são mulheres e quatro são equipes de reportagem ou meios de comunicação. Houve 32 tentativas de impedimento de cobertura, por meio de intimidações, hostilização e danos a equipamentos ou agressões físicas. Houve ainda nove ameaças, quatro processos judiciais abusivos ou decisões judiciais arbitrárias, cinco ameaças de morte, três invasões ou atentados contra a sede de meios de comunicação e um atentado a tiros contra jornalista, entre outras violações.
Entre os responsáveis pela violência contra jornalistas, 57% são agentes privados. Entre os perfis mais comuns estão manifestantes de extrema direita, integrantes do crime organizado e empresas dos ramos de mineração e garimpo, agronegócio e turismo. Os veículos mais vulneráveis a violações são os que cobrem política, meio ambiente, direitos humanos e segurança pública.
Manifestações
No Distrito Federal, uma manifestação reuniu servidores públicos que exigem providências. Bruno Pereira era funcionário licenciado da Funai e vivia sob ameaças. Além dele, o ato público lembrou a história do indigenista Maxciel Pereira dos Santos, morto a tiros em Tabatinga, no Amazonas, em 2019. Até hoje ninguém foi punido pelo crime.
“O ato tem o objetivo de relembrar a memória e a luta de Bruno, Dom e Maxciel, cobrar justiça e conclusão das investigações, punição a toda a cadeia de crime organizado que atua contra os direitos territoriais indígenas e investigação severa a quem quer que possa ter contribuído, por ação ou omissão, com esse desfecho bárbaro”, disse Mônica Machado Carneiro, indigenista e diretora executiva do Sindicato dos Servidores Públicos Federais no Distrito Federal (Sindsep-DF).
Maxciel também era funcionário da Funai e recebia ameaças de morte, assim como Bruno.
Para Mônica Machado, enquanto a Funai não for suficientemente estruturada, a falta de proteção continuará sendo uma realidade no trabalho de campo do órgão. Conforme a indigenista, a estruturação do órgão público precisa incluir uma série de providências para recomposição da força de trabalho, medidas para garantir a segurança de servidores em regiões remotas, implementação de concursos regulares e de um plano de segurança para acionamento em situações de risco, a redução da exposição de servidores a riscos desnecessários e um acompanhamento regular das forças de segurança.
“Conseguimos reinstalar uma mesa de negociação permanente com a atual gestão da autarquia para dar início a algumas providências. Com a mudança de gestão e o fim do assédio, já podemos dizer que voltamos a respirar, mas ainda precisamos avançar muito com um projeto de fortalecimento institucional para a Funai”, disse Mônica a respeito do governo Lula.
A aprovação do projeto de Lei 490/2007 do Marco Temporal também é visto como um aval para que a violência continue nos territórios indígenas. O PL foi aprovado na Câmara dos Deputados na última terça-feira (30), mas ainda precisa passar pelo Senado.
Em memória
Em Atalaia do Norte, uma expedição formada por pessoas que trabalhavam diretamente com Bruno começou às 5h rumo ao local dos crimes. Na região ocorreram discursos e foram cravadas duas cruzes em memória ao indigenista e ao jornalista.
Às 9h, povos indígenas do Vale do Javari organizaram uma cerimônia de despedida e de encerramento do luto na simbologia Kanamari, que perdurou por um ano. Bruno e Dom fazem parte da história do Vale do Javari e são símbolos de luta para os povos indígenas.
“O Bruno representa o recomeço, representa a retomada de uma história que há muito tempo estava parada. Ele trouxe o fortalecimento da nossa forma de fazer política, sem contar que ele representa também um indigenismo que não existe mais. Eu entendo que ele, assim como poucos outros que também já morreram, representa esse indigenismo de mais cuidado, de aproximação com os povos indígenas e que dificilmente a gente vai ter outra pessoa igual”, disse Eliesio Marubo, assessor jurídico da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja).
Eliesio contou que Bruno ensinou muitas coisas aos indígenas, entre elas a mostrar ao mundo o que acontecia no Vale do Javari. Também destacou que o jornalismo de Dom poderia ser aliado às causas e denunciar a criminalidade na região.
“O Dom representa para a gente a imprensa séria que procura se informar na fonte do tema ambiental e dos povos indígenas e o Bruno nos ensinou entre outras coisas a chamar a imprensa para mostrar algumas das coisas que acontecem no Vale do Javari. Ele estava fazendo algo que nós estávamos utilizando corriqueiramente, que era levar jornalistas de renome para mostrar um determinado tema que poderia dar uma boa matéria e assim divulgar os problemas da região. É isso que Dom representa, a imprensa livre, a notícia comprometida”, disse.
No Rio de Janeiro, a viúva de Dom, Alessandra Sampaio, e amigos do jornalista participaram de ato na praia de Copacabana. “Essa rede criminosa se aproveita da pobreza que existe na região, de uma falta de oportunidade de trabalho. Eles arregimentam pessoas para trabalhar no garimpo, para desmatar florestas. E quando a gente vai mudar isso? A gente vê isso desde sempre. Vai precisar morrer mais jornalista lá? Vai precisar morrer quantos indígenas? Quantos ativistas vão precisar ser mortos para se ter uma mudança real?”, cobrou Alessandra.
Continuidade ao trabalho
Além dos atos neste dia 5, um consórcio coordenado pela Forbbiden Stories com 16 veículos da imprensa internacional e nacional, entre eles a Amazônia Real, dá continuidade ao trabalho do jornalista britânico assassinato. O Projeto “Bruno e Dom, uma investigação sobre a pilhagem da Amazônia”, traz uma série de reportagens e documentários investigativos das histórias perseguidas por Dom.
Na coletiva de imprensa “1 ano do assassinato de Dom Philips e Bruno Pereira – qual a resposta do Estado brasileiro?”, realizada no Instituto Vladimir Herzog, foram divulgados dados exclusivos e imagens, incluindo um documentário produzido pelo Programa Tim Lopes (Abraji) na região amazônica, com entrevistas realizadas no local, especialmente sobre a atuação de Bruno Pereira.
“Uma sociedade que não garante condições livres e seguras para o exercício da atividade jornalística, de defesa de direitos fundamentais e de seus povos originários está fadada a apagar seu passado e impedir a construção de seu futuro”, ressalta o documento das organizações que participaram da entrevista.
Outra vertente para continuar o trabalho de Dom se dará na escrita dos capítulos restantes de seu livro. Quando foi assassinado, ele fazia uma viagem no Vale do Javari e conversava com lideranças locais para finalizar os últimos capítulos do livro “Como Salvar a Amazônia: pergunte a quem sabe”. Uma campanha é liderada pela irmã de Dom, Sian Phillips, para arrecadar fundos e financiar a publicação.
Os capítulos restantes dos livros serão escritos por Kátia Brasil, cofundadora da Amazônia Real; Eliane Brum, da Sumaúma; Andrew Fishman, do Intercept Brasil; Tom Phillips, do The Guardian; Jon Lee Anderson, do The New Yorker e Jonathan Watts, do The Guardian e Sumaúma.
Sem segurança
Após os assassinatos, o clima de insegurança continua no Vale do Javari e também para os servidores públicos da Funai que trabalham em outras terras indígenas ameaçadas, alvos da grilagem, do garimpo, da exploração de madeira, pesca ilegal e do narcotráfico.
“O clima continua sendo um clima de tensão. O clima na cidade, na região, sempre foi muito tenso. Teve uma época mais calma, mas de regra foi muito tenso e depois disso tudo [dos assassinatos] ainda persiste”, explicou Eliesio Marubo. A tensão é usada inclusive para criar uma narrativa de medo.
“As autoridades do Amazonas poderiam focar na região para desenvolver políticas públicas mais sérias, mais comprometidas, dado o desenvolvimento da região, sem precisar buscar apoio junto do crime organizado. Mas não foi isso o que aconteceu, a região continua abandonada pelas autoridades locais, estaduais e federais”, explicou.
Segundo ele, por parte do governo federal não houve uma mudança significativa no Vale do Javari e a assistência não chegou até lá de forma urgente após o início do governo Lula. “A administração caminha no tempo diferente do tempo da urgência e da necessidade”.
Os povos do Vale do Javari reivindicam o fortalecimento das políticas públicas da região, instalação do Ibama na região e presença do Estado através das forças policiais para que haja um esfriamento da tensão.
“Isso se faz com presença extensiva da autoridade policial na investigação que vai identificar de fato a origem dessa situação regional do crime organizado, a punição de fato do culpado. Fora isso, as autoridades estaduais e locais poderiam investir em políticas públicas e ter essa atuação mais eficaz, mais presente para fazer propositura de políticas públicas que realmente impactam na vida das pessoas”, concluiu Marubo.
Uma das principais testemunhas dos assassinatos concedeu em anonimato, em maio deste ano, uma entrevista à Amazônia Real onde afirmou ter sido abandonada pelo poder público e estar vivendo sob o risco e medo de ser outra vítima da violência na região.
Crime hediondo
Até o momento, os réus por duplo-homicídio qualificado, ocultação de cadáver e associação criminosa para pesca ilegal no Vale do Javari são Amarildo da Costa Oliveira, o “Pelado”; Jefferson da Silva, o “Pelado da Dinha” e Oseney da Costa Oliveira, o “Dos Santos”. Todos estão presos.
Por associação criminosa, foram denunciados ao Ministério Público Federal (MPF) Otávio da Costa de Oliveira (“Cabôco”), Eliclei Costa de Oliveira (o “Sirinha”), Manoel Raimundo Corrêa (o “Deo”), Francisco Lima Correia (o “Chico Tude”), Paulo Ribeiro dos Santos, Amarílio de Freitas Oliveira (filho de “Pelado”) e Jânio Freitas de Souza. Destes, Amarílio e Jânio estão presos e os demais encontram-se em liberdade provisória com imposição de medidas cautelares.
Sob a suspeita de ser o mandante do crime, Ruben da Silva Villar, o “Colômbia”, até o momento está fora dos processos que demandaram as audiências de instrução que começaram em março e maio de 2023. Conforme já publicado pela Amazônia Real, ele também não será ouvido na nova fase de instrução, quando serão ouvidas testemunhas.