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Xokleng: a história e a luta de um povo indígena que quase foi dizimado no século XX

Mobilização “Luta pela Vida” pelo povo Xokleng nos dias 22 a 28 de agosto de 2021. Cimi/Wikimedia Commons

A preservação do território é essencial para os povos indígenas, pois é o espaço onde a vida comunitária se desenvolve. Como afirmou Ailton Krenak, recente membro da Academia Brasileira de Letras e indígena: uma criança que nasce em uma aldeia não tem uma casa própria, ela nasce no coração de um coletivo. Entender a origem da violência e suas consequências conduz a compreender inevitavelmente aos conflitos territoriais e seus efeitos na vida das comunidades.

Em Santa Catarina, a situação não é exceção e não se limita a casos isolados. Pesquisas históricas têm revelado como o início da imigração europeia, principalmente alemã e italiana, coincide e está relacionada com o início sistemático dos conflitos contra os povos indígenas. No centro do recente julgamento do Marco Temporal, os Xokleng protagonizaram a luta pelo direito de suas terras e a de todos os povos indígenas do Brasil. “Enterrar de vez a tese do Marco Temporal, vai ser um Marco do Basta de questionarem, negarem e tentarem apagar a existência dos povos indígenas”, disse em entrevista à Revista Fórum durante a votação do Marco Temporal, Kerexu Yxapyry, liderança da Terra Indígena Morro dos Cavalos, em Santa Catarina.

Há mais de 6 mil anos, o Sul do Brasil é habitado pelo povo Laklãnõ Xokleng. Desde 1914, eles têm perseverado e resistido na Terra Indígena Ibirama, localizada em Santa Catarina, na região do Vale do Itajaí.

Comunidade Xokleng após o contato com os homens brancos. Créditos: ACERVO SCS

A colonização alemã na província de Santa Catarina remonta a 1829, com a fundação da colônia São Pedro de Alcântara, perto da atual Florianópolis. Coincidentemente, em 1837, o governo provincial estabeleceu a “Comissão de Batedores do Mato”, também chamada de “Patrulha de Bugreiros” ou simplesmente “Bugreiros”, com a missão de combater a “selvageria dos bugres”, um termo depreciativo usado para designar os indígenas. A pesquisa da historiadora Luisa Wittmann mostra que a comissão não se opunha ao assassinato de homens indígenas, nem ao sequestro e captura de mulheres e crianças indígenas.

Bugreiros pagavam suas mortes, assassinos contratados pelos colonos com a aprovação do governo. A remuneração era baseada no número de orelhas de indígenas que o bugreiro apresentava aos seus empregadores. A Lei de Terras promulgada pelo Império em 1850, transformou a terra em propriedade privada. Isso resultou na exclusão de grupos, principalmente negros e indígenas, que habitavam terras coletivas sem registro formal. Em pouco tempo, esses grupos foram considerados ocupantes ilegais.

Até o início do século XX, o Estado manteve uma prática de guerra contra os indígenas locais em favor dos colonos. Durante esse tempo, e mesmo depois, várias estratégias foram implementadas para solidificar a exclusão dos indígenas. Funcionários do Estado criaram narrativas sobre o “problema dos bugres”, rotulando os “bugres” como problemas em si mesmos. Isso justificava o financiamento dos Bugreiros. Além disso, foi construída uma narrativa que fortalecia a imagem da região como “Vale Europeu”. Essa imagem persiste até hoje, baseada tanto na valorização do imigrante europeu e seus descendentes, quanto na supressão da existência de outros grupos étnico-raciais, como os indígenas.

“O que vemos ao longo deste tempo é uma narrativa que tem criminalizado os indígenas por parte do próprio Estado de Santa Catarina. Desde 1850, quando não cumpriu a Lei de Terras ao não reconhecer os aldeamentos e acobertar a ação de colonização da região, que trouxe o desmatamento e expulsou os povos de suas terras”, disse à Revista Fórum o indigenista e doutor em Planejamento Territorial pela Udesc, Nuno Nunes.

A área destinada aos indígenas foi sendo reduzida com o passar do tempo. “Os colonos tinham que desmatar a terra e produzir para provar ao Estado que a terra era deles. Nessa corrida pelo desmatamento e produtividade, os Xokleng viram suas terras serem atacadas, e eles expulsavam esses invasores, ao mesmo tempo que o Estado pagava aos assassinos, conhecidos como bugreiros, para atacar os Xokleng. Isso se tornou uma guerra de ocupação territorial, onde os bugreiros eram pagos por cada par de orelhas das vítimas dessa guerra territorial”, disse ele.

Neste cenário, um acordo foi estabelecido para alocar uma reserva de 60 mil hectares para os Laklãnõ-Xokleng, com o objetivo de evitar interações com eles. Contudo, as promessas de recursos adicionais para o SPI (Serviço de Proteção do Índio) foram descartadas, deixando o sistema de proteção sem fundos. Ademais, a demarcação dos 60 mil hectares como Reserva Indígena não foi realizada. Somente na década de 2000 foi criado um Grupo de Trabalho, a pedido dos Xokleng, para identificar a área a que eles tinham direito. Esse GT chegou à conclusão de que eles tinham direito a 37 mil hectares, o que Nuno Nunes considera uma concessão mínima.

“Com isso, não se falou mais sobre as áreas ocupadas pelos Xokleng no sul de Santa Catarina, na região de Florianópolis ou no vale dos rios Itajaí e Itapocu, de onde eles foram expulsos e mortos pelos bugreiros pagos pelo estado de Santa Catarina. Também não foi mencionada a promessa dos 60 mil hectares feita pelo governador após o contato com o SPI. O espaço Xokleng já havia sido drasticamente reduzido, e a área tradicional já havia sido completamente desmatada pelas empresas madeireiras dos colonos”, finalizou o indigenista.

Hoje, essa região é conhecida pela presença quase exclusiva de descendentes de imigrantes europeus. A cidade de Blumenau é um exemplo notável dessa visibilidade seletiva. A Oktoberfest, um grande festival de tradições germânicas que acontece desde 1984, reafirma anualmente essa visibilidade de uns e invisibilidade de outros. O evento, que ocorre tradicionalmente em outubro, tem a cerveja como seu principal produto.

Violência contra os Xokleng continua

A questão da exclusão, fundamental nas discussões sobre o marco temporal, foi impulsionado por uma contestação do estado de Santa Catarina, atualmente liderado por Jorginho Mello (PL). Esta contestação é em defesa dos agricultores que residem no Vale do Itajaí, embora as terras sejam originalmente pertencentes aos Xokleng.

As relações já tensas entre agricultores e indígenas ficaram ainda mais acentuadas com a retomada das discussões sobre o marco temporal. O deputado federal Rafael Pezenti (MDB-SC) chegou a gravar um vídeo no qual menciona uma “guerra de sangue” se o marco fosse revogado pelo STF, o que realmente ocorreu em setembro.

O povo Xokleng luta pela preservação de suas terras contra o rompimento da barragem Norte, em José Boiteux. No último domingo (8), a unidade de choque da Polícia Militar de Santa Catarina entrou na Terra Indígena Ibirama-Laklaño. A ação, ordenada pelo governador Jorginho Mello (PL), tinha como objetivo fechar as comportas da barragem.

No entanto, a intervenção da Polícia Militar, além de desrespeitar o acordo existente, resultou em agressões aos residentes da área com balas de borracha. Três indígenas foram atingidos, um deles próximo aos olhos, e por pouco não perdeu a visão.

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