Imagine falar cinco línguas, mas viver num país onde nenhuma delas é usada pela maior parte da população e não ter como se comunicar por email nem mensagens eletrônicas, porque os teclados de computadores e celulares não usam caracteres que expressem o seu idioma. É com essa realidade que indígenas deparam ao chegar às áreas urbanas do Brasil em busca de serviços do Estado ou de formação acadêmica.
Professoras do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia) queriam resolver parte desses problemas. Os estudantes Juliano Portela e o Samuel Minev materializaram, no ambiente virtual, o desejo delas — num aplicativo chamado Linklado.
O produto facilita a digitação de pelo menos 40 línguas indígenas e encurta o caminho entre o resultado das pesquisas científicas do Inpa e os povos originários. Os primeiros impactados são universitários e pesquisadores indígenas do instituto. Mas o aplicativo tem como potencial promover o livre uso desses idiomas na comunicação tecnológica, segundo uma das coordenadoras do projeto, a antropóloga do Inpa Ana Carla Bruno.
Para ela, o Linklado é uma forma de equilibrar o contato dos indígenas com a cultura da sociedade envolvente sem perda de suas origens – o que não é a marca da história do Brasil. Ao longo de século passado, comunidades indígenas do Alto Rio Negro, no Amazonas, sofreram etnocídio (genocídio cultural) com a proibição por parte de missionários católicos de viver em suas moradias tradicionais, realizar rituais e falar suas línguas.
“O interesse dos não indígenas em conhecer essas línguas se deu, muitas vezes, por interesses religiosos, com a intenção de catequização. O efeito era a destruição das culturas. A ideia do Linklado é fazer com que os indígenas, usando suas línguas, escolham o que escrever, como contar suas narrativas mitológicas, poesias, músicas”, afirmou a antropóloga.
Ana Carla Bruno contou ao público do TedxAmazônia que muitas línguas indígenas são atualmente faladas por grupos de menos de mil pessoas. No Brasil, mesmo as mais usadas, como tikuna e guarani, têm cerca de 20 mil falantes, apenas.
Ao traduzirem suas dissertações e teses para suas línguas maternas, os indígenas perdiam o trabalho quando enviavam o texto por e-mail a outras pessoas ou abriam os documentos em computadores sem as fontes especiais. Letras e sinais gráficos que representam fonemas inexistentes no português viravam outros caracteres.
A advogada indígena Maial Kayapó, outra palestrante do TedxAmazônia, traduziu para sua língua materna os artigos 231 e 232 da Constituição Federal, a Convenção 169 da OIT e a Declaração da ONU sobre os direitos indígenas, que tratam sobre as garantias legais dos povos originários. Além da dificuldade de traduzir termos jurídicos para o universo da linguagem kaiapó, a revisão automática de programas de textos virou a maior fonte de exaustão porque alterava a produção considerando palavras indígenas como erros de português. “Eu terminava, quando abria estava de outra maneira. Era mais fácil escrever no papel. Foi exaustivo”.
O advogado Eliésio Marubo conta que sofreu racismo na adolescência, em Cruzeiro do Sul, no Acre, em função da sua língua e sotaque indígenas. Para evitar sofrer violência física, perdeu o sotaque da língua materna e restringiu o marubo apenas ao círculo familiar. O advogado avalia que isso não é suficiente para evitar as dificuldades de comunicação com a sociedade envolvente. Em um diálogo recente com funcionário de um órgão de fiscalização do governo brasileiro a respeito de sua região, Vale do Javari, argumentou: “Não sei mais como fazer para que você compreenda o que eu digo. Estou falando na sua língua materna, de forma fluente, de várias maneiras. Há uma dificuldade em você de interpretação de texto, na sua própria língua”, contou.
A fonoaudióloga Naiana Parente, que trabalha na área da Educação em Manaus com populações ribeirinhas e participa como ouvinte do TedxAmazônia, relata que atendeu o caso de uma “criança indígena com dificuldade de aprendizagem” e percebeu que a equipe multiprofissional era incapaz de avaliar o quadro. A criança vivia em ambiente multilíngue: quatro línguas em sua família, além do português falado na escola. “A dificuldade está na formação de professores e na inadequação da escola para a realidade amazônica. Nós desconhecemos os fonemas, a gramática e o vocabulário das línguas indígenas”, disse.
A antropóloga Ana Carla explica que há um processo recorrente de violência contra os indígenas na sociedade de várias formas, e as relatadas por Eliésio e Naiana são violências linguísticas. “Imagina você se autocorrigir para não ser associado a alguém de menor capacidade? Muitas dessas línguas não têm gênero. O indígena vai dizer ‘meu cabeça’, ‘meu barriga’. É preciso entender a estrutura gramatical da língua daquele falante e qual a influência no aprendizado do português. A universidade, as escolas não estão preparadas para esses estudantes”, disse.
A antropóloga afirma que escrever na língua de origem no celular é mantê-las vivas e ter acesso a diversidade cultural do Brasil. “Usar a língua é mantê-la em plena vitalidade. Imagina o indígena sendo contratado para fazer traduções de textos? Vira fonte de renda, vira uma forma de valorizar sua língua. Temos hoje indígenas escritores, cineastas. O próximo passo é os indígenas dominarem o universo da programação. Já pensou joguinhos na língua deles?”, disse.
Saiba mais:
1) Linguistas consideram que há no Brasil de 160 a 180 línguas indígenas faladas. Segundo o Censo de 2022 do IBGE, o país tem 1,7 milhão de indígenas, sem considerar os que vivem em isolamento voluntário.
2) O programa foi lançado em agosto do ano passado e está disponível de forma gratuita nas plataformas Play Store, Windows Store e para Iphone. Até agora, foram mais de 2.000 downloads. Internet e celulares estão disseminados numa proporção maior nas comunidades indígenas.
3) O aplicativo Linklado foi desenvolvido pelos estudantes de Manaus Samuel Minev Benzecry e Juliano Dantas Portela, sob orientação da pesquisadora e micóloga Noemia Kazue Ishikawa, a antropóloga Ana Carla Bruno e da doutora em botânica Ruby Vargas Isla Gordiano. Todas são pesquisadoras do Inpa.
4) Hoje, as pesquisadoras estão à frente de uma nova fase do projeto que é a formação do Linkladas, grupo de mulheres indígenas tradutoras.