O Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucional, por 10 votos a zero, o ato do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) que reduziu drasticamente a participação da sociedade civil no Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). A corte finalizou, na última sexta (19), o julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 623, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República contra o Decreto 9.806/2019.
O decreto foi revogado por outro, assinado pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva, em fevereiro. O regimento e a composição do colegiado, porém, ainda estão em debate e ele será influenciado agora pela determinação do STF.
Além disso, embora a decisão do tribunal aplique-se ao Conama, será uma referência determinante para outros conselhos de participação popular e controle social.
“As premissas do julgamento são um precedente. É a orientação do Supremo para todo país. Portanto, isso abrange e deve ser aplicado a outros conselhos também, mesmo que não tenham sido expressamente citados na decisão”, explica o consultor jurídico do ISA Mauricio Guetta.
“Basicamente, é uma decisão que trata da participação social em matéria ambiental e da própria consolidação da democracia no tema de direitos socioambientais”, completa.
Segundo o voto da relatora, ministra Rosa Weber, a determinação do STF é essencial “para proporcionar a fixação de interpretação, com eficácia erga omnes [para todos] e efeito vinculante, que forneça adequado direcionamento, aos demais Poderes da República, quanto à composição de órgãos deliberativos de caráter decisório.”
O ISA participou do processo como amicus curiae (“amigo da corte”), figura que apresenta informações e subsídios para o julgamento, junto com o WWF-Brasil, o Observatório do Clima, a Transparência Internacional, a Rede de ONGs da Mata Atlântica e a Conectas.
Paridade
Na avaliação de Guetta, um dos pontos mais importantes da decisão é a indicação de que os conselhos devem ter composição paritária entre sociedade e governo.
“A participação popular nas estruturas decisórias governamentais deve obedecer ao critério da paridade. A democracia paritária é condição lógica dos imperativos da democracia direta e da igualdade política”, afirmou Weber em seu voto.
“Ao conferir à coletividade o direito-dever de tutelar e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225), a Constituição Federal está a exigir a participação popular na administração desse bem de uso comum e de interesse de toda a sociedade”, continuou.
O julgamento começou em março de 2021, mas foi suspenso, no mesmo mês, por um pedido de “vista”, para análise mais aprofundada da ação, do ministro Nunes Marques. Em dezembro do mesmo ano, Weber concedeu uma liminar para suspender o decreto. Depois, Marques devolveu o processo para o plenário e o caso retornou à pauta do tribunal.
Decreto de Bolsonaro
Na prática, o decreto deu ao governo Bolsonaro, notoriamente contrário à participação popular, o controle autoritário sobre as decisões do Conama. O colegiado é o órgão mais importante do Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama) e elabora normas ambientais válidas para todo país, desde regras para a qualidade do ar nas grandes cidades, sobre manejo de resíduos sólidos até para a proteção da Mata Atlântica ou a regulação de licenciamentos ambientais, por exemplo.
“O desmantelamento, e mais ainda a supressão, das estruturas orgânicas que viabilizam a participação democrática de grupos sociais heterogêneos nos processos decisórios tem como efeito a implementação de um sistema decisório hegemônico, concentrado e não responsivo, incompatível com a arquitetura constitucional democrática das instituições públicas e suas exigentes condicionantes”, complementou o voto da relatora.
Assinado em maio de 2019, o decreto de Bolsonaro reduziu o número de integrantes do Conama de 96 para 23 ‒ o novo decreto de Lula, de fevereiro, ampliou os assentos para 114.
Na configuração definida anteriormente pelo ex-presidente, havia dez representantes fixos do governo federal e 13 representantes rotativos de estados, municípios, empresários e ambientalistas, que passaram a ser indicados por sorteio, e não mais por eleição, medida igualmente criticada na decisão do STF.
O decreto reduziu de 11 para quatro os representantes ambientalistas, enquanto seus mandatos caíram de dois para um ano. Nesse caso, também proibiu a possibilidade de recondução para um segundo mandato.
Além disso, os estados tinham direito a indicar um representante cada, mas depois de 2019 passaram a ter apenas cinco assentos, um para cada região geográfica e igualmente indicados por sorteio. As cadeiras dos municípios foram reduzidas de oito para duas, restritas a capitais.
Até mesmo órgãos essenciais para a proteção ambiental, como o Instituto Chico Mendes da Biodiversidade (ICMBio) e a Agência Nacional de Águas (ANA), além do Ministério da Saúde e instituições indigenistas, foram excluídos do colegiado.