Na contramão das estatísticas relacionadas às mulheres negras, a pesquisadora Helena Castro, de 55 anos, alcançou um dos mais elevados patamares na ciência brasileira. As décadas de dedicação e as mais de 200 publicações nas áreas da microbiologia e biotecnologia a fizeram conquistar a requisitada bolsa de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Mas, ainda assim, Helena não chegou ao topo da carreira de pesquisadores bolsistas no país, a de categoria 1A. Nem ela nem qualquer outra mulher preta ou indígena recebeu este tipo de bolsa.
Um levantamento do movimento Parent in Science mostrou que, entre as 16.108 bolsas de produtividade (PQ) em vigência em julho deste ano, 64,4% foram destinadas a homens e apenas 35,6% para mulheres. No nível 1A (o mais alto e direcionado a pesquisadores com no mínimo oito anos de doutorado), das 1.192 bolsas ofertadas, apenas 27,2% são para mulheres. Nenhuma delas se autodeclara preta ou indígena.
— Quem é pesquisador no Brasil sabe quantas boas pesquisadoras nível 1 estão à margem do sistema. Eu fujo à regra porque tive a oportunidade de estudar. Quando fui mãe, o pai da minha filha me dava total apoio — recorda-se Helena. — No programa atual de bolsas, existem poucas vagas e carência de uma avaliação para além do mérito.
Primeira doutora negra titular do Instituto de Biologia da Universidade Federal Fluminense, ela conta que chegou a alcançar o nível 1B, mas caiu de categoria após desviar o foco de uma de suas pesquisas, que observou as necessidades das pessoas surdas na pandemia da Covid-19. Para retormar ao patamar, ela levará de dois a quatro anos.
A participação de mulheres nas bolsas PQ não sofreu mudança expressiva em 20 anos: em 2004, eram 33,4%; hoje, são 35,6%. Houve um aumento de pessoas pardas (9,2% em 2005 e 15,8% em 2023). Mas a participação de pessoas pretas continua baixa — de 1,1% para 2,8%, na mesma comparação. Já a participação de indígenas não chega a 0,5%.
As bolsas de produtividade são divididas em cinco níveis. Para a distribuição das bolsas são definidos critérios próprios pelos Comitês de Assessoramento (CAs) de cada área do conhecimento. Nenhum deles garante reserva de vaga com base no gênero ou na cor dos candidatos.
‘Muitas desistem’
Para a coordenadora do Parent in Science, Fernanda Staniscuaski, as pesquisadoras subrepresentadas são afetadas pelo racismo estrutural.
— Os CAs levam em consideração as métricas de produtividade como cerne na aprovação das bolsas, atributo que não valoriza a carreira das mulheres, marcada pela falta de acessos, pelo trabalho extra e pelo cuidado de pessoas fora da academia. Muitas desistem das bolsas por terem suas pesquisas preteridas diversas vezes. Apesar de existirem medidas compensatórias para as que têm tempo menor de contribuição com pesquisas, não são suficientes — analisa Fernanda, defendendo ainda a criação de um grupo de trabalho para monitorar a distribuição das bolsas PQ.
O CNPq informou em nota que o Programa Mulher e Ciência, criado em 2005, já investiu R$ 20 milhões em mais de 700 projetos. O conselho acrescentou que permite a prorrogação de várias modalidades de bolsas em caso de parto e adoção, e a inserção no Currículo Lattes da licença-maternidade, além de recomendar aos CAs a admissão de medidas para correção das possíveis lacunas de gênero e étnico-raciais. Em 2023, segundo o CNPq, mais de 50% dos integrantes dos comitês passaram a ser mulheres.
Oportunidade paralela
Na tentativa de equilibrar o cenário, ações paralelas impulsionam pesquisadores negros. A geógrafa Thamyres Sabrina Gonçalves foi aprovada em um edital de pós-doutorado do Instituto Serrapilheira e da Faperj, exclusivo para negros e indígenas, e vai investigar como o carvão descoberto em áreas de floresta que normalmente não pegam fogo pode ajudar a compreender a história evolutiva da Serra do Espinhaço, entre Minas Gerais e Bahia.
Descendente de indígenas e quilombolas, Thamyres viveu na rua na infância e passou por abrigos até ingressar na universidade por meio de ações afirmativas. Foi mãe durante o mestrado e fez doutorado em agronomia — área do único professor que aceitou orientá-la com um bebê.
— Tenho o sonho de me tornar pesquisadora 1A, mas não quero ser a primeira e nem a única, porque já temos no Brasil muitas pesquisadoras em condições de ocupar esse posto. Quero fazer ciência com qualidade e sem elitismo — afirma.
Segundo a diretora de Ciência do Serrapilheira, Cristina Caldas, a iniciativa do instituto, com foco em ecologia, vai contribuir com a formação de pesquisadores com visões antirracistas na ciência.
— Negros e indígenas não querem mais ser objeto de estudo, eles querem fazer pesquisa. Ampliar o fomento é dar autonomia e apoio institucional para que esses cientistas tenham uma boa produção acadêmica e consigam turbinar seus currículos — conclui.