Dezenas de homens encapuzados com armas de fogo e facas cercaram e espancaram indígenas do povo Guarani Kaiowá que, no sábado (18), haviam retomado uma área que faz parte do território Pyelito Kue e está sobreposta pela Fazenda Maringá, na cidade de Iguatemi (MS). O grupo agredido conseguiu voltar para a aldeia somente na quinta-feira (23), machucado e com escoriações. José*, indígena que estava na retomada, conta que além do espancamento, “jagunços ameaçaram estuprar as mulheres”.
Referidos como “pistoleiros dos fazendeiros” pelos Guarani Kaiowá, estes homens também interpelaram, roubaram e agrediram na última quarta-feira (22) uma antropóloga, um engenheiro florestal e um jornalista canadense que tentavam chegar ao local, quando já circulavam denúncias do conflito.
Na noite do mesmo dia 22, a Polícia Federal (PF) de Naviraí e a Força Nacional fizeram diligências na região e prenderam em flagrante um produtor rural, com munição em sua residência. Questionada sobre esta prisão e identidade do homem detido, a PF se limitou a dizer que “segue nas investigações”.
“Pyelito Kue é um exemplo cabal e um dos mais intensos do que a não demarcação causa ao povo Guarani Kaiowá”, resume Matias Hampel, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Expulsos de seu território entre 1928 e 1940 e confinados na Reserva Indígena de Sassoró, os Guarani Kaiowá lutam para recuperar o tekoha (lugar onde se é, em guarani) Pyelito Kue e Mbarakay há gerações.
A área – sobre a qual estão também outras propriedades rurais, como a Fazenda Cachoeira e a Fazenda Santa Rita – integra a Terra Indígena (TI) Iguatemipeguá I, já identificada e delimitada pela Funai desde 2013. O processo demarcatório, no entanto, está estagnado.
“Essa violência infelizmente vivida agora por um jornalista estrangeiro é o que há décadas a comunidade denuncia estar sofrendo. O caso de agora remonta ao período em que acompanhamos 33 ataques paramilitares contra a comunidade em oito meses, entre 2015 e 2016”, ressalta Hampel.
Acionada pelo Cimi desde a segunda-feira (20), quando chegaram as informações de que acontecia um ataque armado contra a retomada, a Força Nacional chegou ao local apenas depois da agressão ao fotojornalista canadense. As caminhonetes e os homens armados já haviam se retirado.
“Já há muitos anos esperando a justiça que não vem, decidimos fazer a retomada. É onde agora é a Fazenda Maringá, mas ali é a nossa aldeia, é o centro da aldeia Pyelito”, conta José.
“Foi de manhã quando os pistoleiros chegaram, primeiro eram quatro. A gente não tem arma, nada para se defender, só arco e flecha. Quando eles começaram a atirar, o pessoal correu, corri também. Ali embaixo tem uma represa, e tinham outros nove pistoleiros escondidos no mato”, relata o indígena. Ali que três mulheres e um homem foram pegos e, segundo ele, muito feridos.
“Uma delas uma senhora, eles bateram mais. Machucou muito o braço e a perna dela. Eles bateram na barriga das outras mulheres com a espingarda”, descreve José.
Agressão contra antropóloga, engenheiro florestal e jornalista estrangeiro
A antropóloga Carolina Mira, o fotojornalista canadense Renaud Philippe e o o engenheiro florestal Renato Farac acompanhavam a Aty Guasu, Grande Assembleia Guarani Kaiowá, no município de Caarapó (MS) quando, na quarta-feira (22), foram até Iguatemi (MS), na fronteira com o Paraguai.
Na rodovia MS-386 e já próximos da área onde pretendiam apurar as denúncias, encontraram uma guarnição do Departamento de Operações de Fronteira (DOF), vinculado à Polícia Militar do Mato Grosso do Sul.
“O policial perguntou quem a gente era, eu falei que da imprensa, e ele disse que não tinha nenhuma ocorrência ali. Eu disse ‘a Força Nacional está vindo, né? Vamos aguardar para entender o que está acontecendo’. E ele riu”, conta Mira, que há dois anos trabalha com Philippe em um documentário sobre conflitos de terra.
Foram ao perímetro urbano e ao retornarem, no entroncamento rural entre as rodovias 295 e 386, os três se depararam com uma barreira de dezenas de caminhonetes e, segundo eles, de 30 a 50 homens armados, muitos dos quais encapuzados. Assim que o trio desceu do veículo, uma caminhonete se aproximou, o motorista tinha um revólver em mãos e um homem no banco de trás falou para saírem dali.
“Quando a gente estava indo para o carro, os homens mascarados correram na nossa direção e começaram a nos agredir”, conta Mira. Ao Brasil de Fato, Carolina e Renaud relataram terem sido jogados no chão e, principalmente ele, espancado. Com uma faca, cortaram um tufo do cabelo do canadense. “Me xingavam de ‘vadia de ONG’”, diz a antropóloga. Ameaçaram marcar seu rosto com a faca.
“Eu nunca vi um ódio assim. Isso foi o mais assustador”, salienta Mira. “Coletamos relatos de violências sofridas pelo povo Guarani há dois anos, é muito sofrido ouvir. Mas ver esse ódio na sua frente é impressionante”, diz. Trabalhando há 20 anos em áreas de conflito, o jornalista canadense afirma nunca ter visto algo similar.
Enquanto eram agredidos, os três tiveram todos os pertences tirados de dentro do carro. De havaianas até passaportes, cartões bancários, câmeras fotográficas, cadernos pessoais, dinheiro e celulares. Em dado momento, uma viatura da Polícia Militar apareceu. Carolina conta que fez a eles um sinal de pedido de ajuda. Foi ignorada.
“Ver a polícia, ver que nos viram, viraram a cabeça e se retiraram, é inacreditável. Não há como fugir da pergunta: a quem eles estão servindo?”, questiona Renaud Philippe. O fotojornalista está com um enorme hematoma na barriga.
O Brasil de Fato pediu uma posição da Secretaria de Segurança Pública do Mato Grosso do Sul, governado por Eduardo Riedel (PSDB), mas não teve resposta até o fechamento da matéria.
Em dado momento, a antropóloga, o jornalista e o engenheiro florestal conseguiram se desvencilhar, entraram no carro e foram até Amambai (MS), onde acontecia um encontro da Kuñangue Aty Guasu, Grande Assembleia das Mulheres Guarani Kaiowá.
“É muita violência, mas também a beleza da luta é enorme. Difícil encontrar algo parecido”, relata Carolina, ao dizer que, quando chegaram em Amambai, foram acolhidos com cantos. “Os rezadores vieram nos fazer uma cura para tirar o susto e proteger contra a maldade”, expõe.
Acompanhados pela Defensoria Pública da União (DPU), os três registraram a ocorrência na Delegacia de Amambai. O caso foi encaminhado à Polícia Federal de Naviraí, “tendo em vista que o fato ocorreu em contexto de disputa de terras envolvendo comunidades indígenas da região de Iguatemi e em razão deste conflito”, informou a DPU.
Enquanto estavam na delegacia, afirmou Renaud Philippe, perceberam estar sendo observados por pessoas em um carro que passava bem lentamente. Nele estava escrito: “Fazenda Maringá”.
“Só queremos nosso tekoha”
O drama de Pyelito Kue ganhou grande repercussão em 2012 quando, ameaçados de despejo de uma área que ocupavam às margens do Rio Hovy, a comunidade soltou uma carta pública interpretada por alguns como o anúncio de um suicídio coletivo.
“Queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje, por isso, pedimos ao Governo e à Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo, mas solicitamos o decreto da nossa morte coletiva para nos enterrar aqui”, dizia a carta. A reação gerou uma campanha nas redes sociais em que as pessoas colocaram “Kaiowá” como sobrenome.
O documento, explica Matias Hampel, não anunciava um suicídio. “Essa carta era de um povo massacrado dizendo que conhecia muito bem a violência, mas que se submeteria a ela se fosse preciso, com a máxima coragem para recuperar aquilo que os tornava pessoas. Seu tekoha”, diz.
Em 2015, dois anos depois de os 47 mil hectares da TI Iguatemipeguá I serem delimitados e nada mais acontecer, os Guarani Kaiowá retomaram parte do território. “E sofreram um ataque paramilitar brutal dos fazendeiros”, recorda Hampel. “Apanharam muito. Indígenas tiveram suas mãos e pés atados e jogados numa estrada vicinal. Foram encontrados e resgatados pela Funai”, conta.
Dada a violência deste episódio, o Ministério Público Federal propôs um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) delimitando que os indígenas permaneçam em uma área de 90 hectares, onde estão desde então. Trata-se de 0,2% do território já delimitado pela Funai. “A comunidade vem tentando, sem sucesso, dialogar com o Estado para dar uma celeridade para o seu processo”, destaca Hampel.
“Aqui a gente não tem muito espaço, não. Queremos plantar, viver bem, isso aqui não é a nossa aldeia ainda”, ressalta José. “Queremos viver em paz na nossa própria terra. Só queremos nosso tekoha. E fazendeiro não quer entregar. Mas a gente não vai parar de lutar”, garante.
*Nome alterado para preservação da fonte.