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Fazendeiros preveem ‘conflito de sangue’ com indígenas na Bahia devido a demarcações

Kãdara Pataxó, mãe de Gustavo, indígena de 14 anos assassinado por pistoleiros em setembro de 2022, mostra a cruz instalada no local onde o filho tombou, em ocupação na terra indígena Comexatibá, em Prado, sul da Bahia - Fabio Victor/Folhapress.

SUL DA BAHIA   Embaixo de uma frondosa mangueira no mesmo terreiro onde um ano antes viveu o horror, Eliane de Oliveira Conceição, a Kãdara Pataxó, reconstitui o assassinato do filho Gustavo, de 14 anos. “O dia nem tinha amanhecido, eram umas 5h, quase todo mundo ainda dormia. Ouvimos barulho e pensamos que era gente bêbada voltando de uma festa. Um Uno passou com a porta aberta e já foi aquela tiratança, meteram bala e jogaram bomba.”

Gustavo acordou assustado e, como todos ali, correu para o mato nos fundos da casa, numa fazenda ocupada na zona rural do município de Prado (BA). Um tiro de fuzil atingiu a cabeça do adolescente, que chegou morto ao hospital, em 4 de setembro do ano passado. Outro garoto foi baleado no braço.

“Não é fácil conviver com isso. Era um menino muito querido, estava o tempo todo ao meu lado, me ajudava em tudo. Aí tiraram a vida dele”, afirma Kãdara, às lágrimas, antes de mostrar à reportagem os buracos de bala nas paredes e a cruz fincada no local onde o filho tombou.

Perícia e depoimentos comprovaram que os assassinos desferiram mais de cem tiros, com armas restritas a forças de segurança, e arremessaram três granadas de fumaça, “indicando que a atividade criminosa empregou força armada capaz de exterminar toda a comunidade indígena no local, em número aproximado de quinze indígenas da etnia Pataxó”, segundo a denúncia do Ministério Público Federal, aceita pela Justiça.

Três policiais militares –Renato Martins do Carmo, Willer Diorgenes Santos Melo e Sivaldo Almeida de Oliveira– que estavam de folga foram presos preventivamente e denunciados por homicídio qualificado e tentativa de genocídio. Pouco depois do atentado, um deles deu entrada num hospital próximo à fazenda com um ferimento, tendo sido auxiliado pelos outros dois –embasando as provas do inquérito e da denúncia.

Os três réus negam a autoria do crime e conseguiram na Justiça o relaxamento da prisão –aguardam o julgamento em liberdade. A investigação não apontou os mandantes do crime.

Gustavo engrossou a lista de indígenas vítimas da violência no sul da Bahia, região em que a escalada dos conflitos fundiários se mescla ao tráfico de droga, à guerra de facções e à letalidade policial comuns às periferias das maiores cidades da região, como Porto Seguro, Eunápolis e Santa Cruz Cabrália. Segundo o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a Bahia é o estado brasileiro com maior número de mortes violentas e também aquele em que a polícia mais mata.

Próxima a aldeias indígenas vizinhas ou sobrepostas ao Parque Nacional do Descobrimento, a propriedade onde ocorreu o crime está registrada no nome do fazendeiro Airson Celino Gomes, o Nem Gomes. Fica na terra indígena Comexatibá, identificada e delimitada pela Funai desde 2015, mas que depende dos trâmites finais da homologação –portaria declaratória do Ministério da Justiça e assinatura do presidente Lula.

Foi ocupada pelos pataxós três dias antes do atentado, como parte de uma onda de ações –chamadas de “retomadas” e “autodemarcações” pelos indígenas, e de “invasões” pelos fazendeiros– iniciada em junho do ano passado e que soma cerca de 40 territórios. Os proprietários rejeitam os relatórios da Funai que embasam as iniciativas. No caso da Comexatibá, são 150 contestações.

Procurado pela reportagem por meio de seu advogado, Nem Gomes não quis se manifestar. Dias depois do crime, o fazendeiro entrou com uma ação de reintegração de posse da fazenda. A Justiça Federal deferiu o pedido, mas a liminar foi em seguida cassada pelo ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, a pedido da Defensoria Pública da União, e em seguida o andamento do processo foi suspenso por determinação do mesmo STF, no âmbito da ação do marco temporal.

Na decisão em que acolheu a liminar de reintegração, o juiz federal Raimundo Bezerra Mariano Neto listou o caso como “mais um desdobramento da omissão estatal na definição dos espaços territoriais indígenas, contribuindo para a eclosão de situações conflituosas envolvendo indígenas e não indígenas”. Escreveu ainda que “a inércia estatal em atuar (…) ‘estimula’ o conflito agrário”.

Tem sido a bala, e não a Justiça, o recurso empregado no sul da Bahia para tentar expulsar os indígenas que ocupam as terras habitadas por seus ancestrais. Menos de cinco meses depois da morte de Gustavo, mais dois jovens pataxós foram assassinados na região, em janeiro deste ano.

Desde então, o Governo da Bahia criou uma força-tarefa com as polícias Militar, Civil e Rodoviária Federal para enfrentar a situação. A ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, montou um gabinete de crise e visitou a região.

A violência continua, com casos recorrentes de tiros em direção às ocupações. Os pataxós relatam uma rotina de medo e tensão, que inclui o sobrevoo frequente de drones sobre territórios ocupados. Indígenas e agropecuaristas se acusam por incêndios, infiltração de traficantes nas fazendas e destruição de plantações de eucalipto –uma das culturas da região, junto com café, cacau e pimenta do reino, além de gado.

O último relatório Violência Contra Povos Indígenas no Brasil, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), relativo a 2022, aponta que o assassinato de indígenas na Bahia cresceu desde 2019, conforme dados oficiais dos governos estaduais –a maioria pataxós.

No ano passado foram nove mortes, com informações coletadas somente até junho. Pelos dados levantados pelas equipes do próprio Cimi, o quadro é mais grave: nove mortes em 2022, e 14 em 2021.

A Bahia tem a segunda maior população indígena do Brasil, com 229 mil pessoas, atrás somente do Amazonas. Na região do extremo sul (de Santa Cruz Cabrália até Prado), há cinco terras indígenas já homologadas –Barra Velha, Coroa Vermelha, Águas Belas, Imbiriba e Mata Medonha– que somam ao todo pouco mais de 12 mil hectares (quase 76 parques do Ibirapuera, ou 7,8% do município de São Paulo).

Caso o governo federal homologue as outras áreas já identificadas e delimitadas pela Funai, esse território aumentaria quase quatro vezes.

Na última grande onda de ocupações realizadas por indígenas na região, em 2014, a Justiça acolheu todos os pedidos de reintegração de posse feitos pelos fazendeiros.

A leva atual, iniciada sob o governo Jair Bolsonaro (PL) e ampliada na gestão Lula (PT), teve como motivação enfrentar a política anti-indigenista do primeiro e depois pressionar o petista a cumprir sua promessa de retomar as demarcações de terras indígenas.

“Vimos o governo Bolsonaro avançar contra nós, estávamos perdendo mais direitos e territórios. Era ‘se correr bicho, pega; se ficar, o bicho come’. Então fomos para cima do bicho”, declara o cacique Mãdy Pataxó, que lidera uma das ocupações.

Os fazendeiros afirmam que perderam a confiança na polícia e na Justiça e por isso resolveram pegar em armas. “Os produtores estão sem amparo nenhum. Não tem legalidade, não tem Justiça, chama-se a polícia, a polícia não tira, fica olhando. Vai explodir um conflito na região, um conflito sério, um conflito de sangue. Porque os produtores estão perdendo a paciência”, disse o presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Porto Seguro, Celso Cipitelli.

Ele define os integrantes das ações como “pseudo indígenas”. “Estão invadindo as propriedades, mandando o pessoal sair para a rua, botando fogo… Os produtores pegaram nas armas, começaram a enfrentar, estão tomando atitude que a polícia e a Justiça não tomam. Está feio o negócio aqui, está pior do que faroeste.”

Comandante do 8º Batalhão da Polícia Militar de Porto Seguro, o tenente-coronel Alexandre Costa de Souza diz que a corporação “cumpre a lei, a ordem judicial” e não avalia o mérito da questão. “Eles [os indígenas] estão na expectativa de ter aumento de terra demarcada. Só que o que eles estão fazendo é invadir aquela área definida no estudo da Funai como terra indígena antes da homologação do governo federal. Isso não pode ser feito.”

Souza conta ter boa relação com os líderes indígenas da região e ressalta a sua ascendência pataxó (“e minha esposa é tubinambá”). Quanto à prisão de policiais militares acusados de crimes, o tenente-coronel diz que participou das diligências em que houve a prisão deles. “A gente corta na própria carne. Dói? Dói. Machuca? Machuca. Mas tem que ser feito.”

Coordenador da Regional Sul da Bahia da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) desde abril, o ex-cacique Aruã Pataxó, ex-vereador em Cabrália pelo PC do B e uma das principais lideranças indígenas do estado, tem percorrido as ocupações para afirmar o compromisso do governo federal de conter a matança de indígenas e promover novas demarcações.

No final de setembro, a ministra Guajajara enviou ao colega Flávio Dino (Justiça) pedido para que agilize a demarcação de dez terras indígenas prontas aptas para isso, entre elas a Barra Velha (ampliação) —mas não a Comexatibá.

Aruã revela apreensão com a indefinição sobre a questão do marco temporal. A tese, que limitaria as demarcações, foi derrubada pelo STF, mas em seguida o Senado aprovou projeto em sentido contrário. Lula vetou o trecho principal, o que mantém o impasse.

“Para nós não existe marco, porque antes de existir o Brasil já estávamos aqui. Essa insegurança jurídica atravanca mais nossa demarcação”, diz o coordenador da Funai.

Procurados, o Ministério da Justiça e a Polícia Federal não se manifestaram.

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