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Conheça a trajetória de Mairu Karajá, pós-graduando indígena que vai à França

Originário da terra Krehawá (São Domingos), no Mato Grosso, Mairu Karajá posa na Maloca/UnB, centro importante para a socialização dos indígenas na Universidade. Foto: Serena Veloso/Secom UnB

Superação. A palavra, tão recorrente na trajetória de estudantes indígenas para acesso ao ensino superior, também se repete quando Mairu Hakuwi Kuady Karajá – o estudante indígena da pós-graduação em Direito que vai para a França – reflete sobre seus próprios desafios.

Aos 16 anos, incentivado pela avó, alimentou o desejo de ampliar os horizontes na educação, o que o mobilizou a deixar sua comunidade e a escola indígena para estudar em um internato próximo à vila de Planalmira, na cidade goiana de Abadiânia, após receber uma bolsa de estudos. Junto a esta vontade, estava também a de aprimorar o português, tido como segunda língua em sua aldeia, onde se fala principalmente o iny rybé.

“Quando eu saí da aldeia, não tinha perspectiva de ir para a graduação porque achava algo muito distante. Eu não sabia direito como funcionava. No internato, me deparei com outra realidade. Não conhecia ninguém, não sabia muito bem das coisas, sempre estudei na escola da aldeia e tudo era ensinado na nossa língua”, lembra.

Para arcar com as despesas escolares, teve de conciliar os estudos ao trabalho no próprio internato, fato que restringiu suas horas de lazer. Embora tenha sentido os desafios financeiros e linguísticos, o doutorando reconhece o quanto a oportunidade de receber uma educação de qualidade foi impactante em sua vida.

“Eu digo que a educação realmente transforma. Eu sou muito defensor da educação, porque é o que mudou minha vida. Eu tive mais orgulho da minha identidade, de saber quem eu sou, da origem da minha família e do meu povo, de fortalecer a nossa língua”, lembra o estudante, que hoje tem um perfil no Instagram dedicado ao ensino do iny rybé.

UNIVERSIDADES – Mairu foi da primeira turma de Relações Internacionais da Universidade Federal do Tocantins (UFT), curso escolhido por seu interesse em estudar política. Na graduação, o envolvimento em programas e atividades diversas, além do estímulo dos professores, foram essenciais para impulsioná-lo a dar continuidade à trajetória acadêmica.

Mirou em duas instituições para realizar o mestrado em Direito: a Universidade Federal de Goiás (UFG) e a UnB, onde achou que não teria chances de ingressar pela concorrência. A conquista veio em dobro. Passou nas duas seleções, e acabou se matriculando na Universidade de Brasília.

“Minha mãe até falou que ela estava com as energias voltadas para eu vir para Brasília. E foi a melhor escolha. Aqui, eu pude estabelecer relações de amizades muito boas e também de produção acadêmica. O programa do Direito é de excelência”, relata.

A experiência na pós-graduação, onde ingressou em 2020, foi logo transformada pela pandemia e a consequente implementação do ensino remoto emergencial na UnB. Diante da situação, Mairu teve de retornar a seu povo, que não via há anos, para também oferecer suporte neste período.

COMUNIDADE – Apesar da frustração em realizar parte do mestrado a distância, a possibilidade de se aproximar posteriormente de outros estudantes de diferentes etnias no Centro de Convivência Multicultural dos Povos Indígenas (Maloca) e o apoio recebido da Coordenação da Questão Indígena (Coquei), vinculada à Secretaria de Direitos Humanos (SDH/DAC/UnB) abriram portas para outras oportunidades de formação.

“Se a UnB não fosse uma universidade de excelência, talvez esse programa [o Guatá] não teria vindo para cá. A UnB tem toda essa estrutura, desde a Coordenação Indígena até a Maloca, que é um ambiente de convívio que a gente tem mais próximo para interação entre indígenas”, pondera o estudante.

Mairu Karajá na sede da ONU, em Genebra, durante curso sobre mecanismos de direitos humanos das Nações Unidas. Foto: Arquivo pessoal

Mairu Karajá destaca que a estrutura é um diferencial diante outras universidades. “E tem essa pluralidade daqui, de ver gente de todas as regiões, de lugares diferentes. É aqui que a gente consegue estabelecer contatos, amizade e relações profissionais.” E foi neste ambiente de socialização da Maloca que Mairu tomou conhecimento do edital Guatá, pela coordenadora Indígena da SDH, Cláudia Renault.

PROJEÇÃO INTERNACIONAL – Além de concluir o mestrado e ingressar no doutorado na UnB, recentemente Mairu pôde participar de um programa de bolsas internacional do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), em parceria com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi/CNBB) e a UnB, para formação de indígenas e quilombolas quanto aos mecanismos de direitos humanos das Nações Unidas.

A oferta, pela primeira vez em português, ocorreu em duas etapas: uma em Luziânia (GO) e na UnB, e outra em Genebra, na Suíça. Mairu foi uma das dez lideranças indígenas e quilombolas de todo o Brasil – três da Universidade – selecionadas para estar na última etapa, realizada entre junho e julho deste ano.

“O objetivo do curso é que indígenas com relação direta com suas comunidades tenham acesso ao funcionamento do sistema da ONU sobre o mecanismo de direitos humanos para os povos indígenas”, explica o pesquisador.

“Por exemplo, a Convenção 69, os comitês, as seções, o Fórum Permanente [sobre Questões Indígenas], o Fundo Voluntário para os Povos Indígenas. Todo o curso foi preparado para que a gente pudesse entender isso e replicar essas informações junto às comunidades, para que outros possam também ter oportunidade de acessar a ONU, algo muito distante da nossa realidade”, continua.

Esta primeira experiência de Mairu no exterior só fez crescer ainda mais seu desejo de vivenciar o intercâmbio na França, sem, no entanto, perder de vista possíveis barreiras que possam surgir. “Tento manter um panorama real dos desafios que podem interromper, das frustrações que podem vir, da dificuldade do idioma, de uma cultura e universidade diferentes, onde vão estar milhares e milhares de pessoas de todo o mundo, e do choque de sair do nosso país, de ficar um ano lá, longe dos amigos, da família e mais longe ainda da aldeia.”

Ainda assim, ele celebra a conquista e espera que mais estudantes indígenas também possam alcançar tal feito. A eles, Mairu deixa uma mensagem: “Primeiro, acreditar em si. Não deixe nunca nenhum não indígena falar que você é incapaz, que você não vai conseguir. E ter o apoio da família, porque isso nos dá mais segurança para acreditar nos nossos sonhos. A síndrome do impostor está muito presente na nossa realidade enquanto indígena. Que esses jovens acreditem em si e não desistam de si! Às vezes isso vem de uma falta de perspectiva de querer acessar outros espaços e não conseguir. Mas eu digo que é possível”.

Envolver-se em diferentes atividades acadêmicas e criar vínculos com professores e estudantes são outras dicas do doutorando para os indígenas que querem se projetar na universidade e em experiências de intercâmbio.

“Cada indivíduo indígena tem sua trajetória e sua história de vida. E só a gente [que participou do edital] sabe como chegou ao doutorado-sanduíche. Esses momentos eu quero compartilhar com os futuros bolsistas que virão. Porque não é da noite para o dia, é um longo percurso, em que você tem de abdicar de muitas coisas, por exemplo, deixar sua família, sua comunidade, de falar seu idioma por um período longo. De tudo isso, a gente abre mão para tentar construir algo diferente e poder inspirar outros indígenas”, reconhece.

APOIO – Além de receber visto de pesquisador e alojamento, o doutorando terá outros benefícios para estudar no exterior, como passagens aéreas para ida e volta, bolsa para manutenção dos gastos cotidianos, seguro saúde, tutor na universidade de destino, curso de francês, além de acesso com preços preferenciais a eventos culturais.

Para apoiar os estudantes que tiveram interesse em concorrer ao edital, além de oportunizar a formação em outro idioma, a Coquei, em parceria com o Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução (LET/IL), tem oferecido, desde o início de 2023, um curso de francês para indígenas, na Maloca.

A iniciativa visa apoiar o desenvolvimento de habilidades de nível básico na língua francesa, bem como promover um encontro entre saberes indígenas e não indígenas, elaborar material didático inédito para o ensino do francês entre este público.

Vinte estudantes de graduação e pós-graduação participaram da disciplina, que será estendida no próximo semestre ao segundo nível e incluirá a realização do curso introdutório para novos interessados.

Cláudia Renault explica que, além de superar a barreira do aprendizado do português, tido para muitos estudantes indígenas como segunda ou terceira língua, eles têm o desafio, dentro da Universidade, de ler textos acadêmicos em outros idiomas, como inglês, francês e espanhol, o que impacta o aprendizado.

“A Coordenação Indígena tem buscado parcerias com professores, mestrandos e doutorandos para desenvolver cursos nestas línguas, para que os estudantes se fortaleçam e possam desenvolver estas atividades de forma mais segura”, aponta.

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