Quando deixou o Oeste do Amazonas rumo à Terra Indígena Capoto-Jarina, em Mato Grosso, a psicóloga Jaqueline Aparício, indígena da etnia Kokama, sabia que encontraria um cenário difícil ao desembarcar. Mas nada a havia preparado para aquilo. A aldeia Piaraçu, onde havia sido enviada para trabalhar, estava engolida pela fumaça.
“O nosso território é extensão do nosso corpo. Faz parte da nossa espiritualidade. Ver a destruição dos animais ou de uma árvore é como ver a nossa própria destruição”, disse à BBC News Brasil.
O relato de Jaqueline Aparício ilustra um dos aspectos menos visíveis da crise ambiental causada pelos incêndios florestais no Brasil: a destruição deixada pelo fogo nas terras indígenas brasileiras neste ano.
Mas um levantamento feito com exclusividade pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) para a BBC News Brasil mostra o tamanho do estrago deixado pelas queimadas nesses territórios.
Segundo o levantamento, entre janeiro e agosto deste ano, o fogo destruiu 3,08 milhões de hectares em áreas destinadas aos povos indígenas do país. Isso equivale a 27% dos mais de 11 milhões de hectares de área queimada em todo o Brasil.
Em relação ao ano passado, o crescimento no tamanho da área queimada em terras indígenas foi de 76%.
Nas comunidades, os efeitos de tanta queimada são sentidos por toda a população, mas especialmente por jovens e idosos que sofrem com problemas respiratórios. Mas o impacto do fogo não é sentido apenas no ar.
O avanço das queimadas vem dificultando o acesso a territórios, destrói casas e roças e coloca em risco a segurança alimentar de comunidades inteiras.
Lideranças indígenas e ambientalistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que os dois principais fatores responsáveis por esse aumento na área queimada em terras indígenas são: os efeitos das mudanças climáticas e o avanço do agronegócio.
Procurado, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) enviou nota dizendo contratou mais de três mil brigadistas e que metade deles é indígena. A nota também informou que o governo liberou R$ 514 milhões a mais no orçamento para o combate a incêndios em todo o Brasil.
O ministério afirmou também que a resposta do governo federal é coordenada por uma sala de situação, criada em junho, que envolve diversos ministérios.
Após a publicação da reportagem, o Ministério da Saúde enviou nota afirmando que criou em 2023 o Comitê de Resposta aos Eventos Extremos na Saúde Indígena, que tem técnicos especializados no enfrentamento à seca, estiagem e queimadas. Além disso, disse que a Força Nacional do SUS foi enviada ao Amazonas para apoiar ações preventivas.
A pasta disse ainda dar apoio a gestores, equipes e lideranças locais; emitir alertas sobre exposição à fumaça; oferecer soluções emergenciais para o abastecimento de água; monitorar sua qualidade; e enviar antecipadamente medicamentos e insumos aos territórios.
A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) foram procurados, mas não responderam aos questionamentos.
Crise nacional
O aumento das áreas destruídas pelo fogo em terras indígenas ocorre durante a pior temporada de queimadas no Brasil em 14 anos. De acordo com dados do Inpe, até 23 de setembro, o país havia registrado 202 mil queimadas, um aumento de 98% em comparação com o ano anterior.
Enquanto o Inpe contabiliza o número de queimadas, o IPAM avaliou a área total destruída. O IPAM é uma organização não-governamental que atua no combate às mudanças climáticas e na preservação do meio ambiente. Segundo os dados, entre janeiro e agosto deste ano, o fogo consumiu 11,3 milhões de hectares no Brasil, um aumento de 117% em relação ao mesmo período do ano anterior, quando foram destruídos 5,2 milhões de hectares.
Ambos os levantamentos utilizaram dados de satélites, mas focaram em aspectos diferentes: o Inpe no número de focos de incêndio e o IPAM na extensão das áreas afetadas.
Esse cenário reflete a crescente destruição ambiental no Brasil, com grandes impactos em áreas protegidas e terras indígenas.
O governo federal, responsável pelo combate aos incêndios em terras indígenas, anunciou uma série de medidas para lidar com a esta crise como o aumento no número de brigadistas e contratação de mais aeronaves para o combate às queimadas, mas, até agora, o número de focos de calor continua crescendo.
Em meio ao aumento no número de incêndios, comunidades dentro das terras indígenas relatam uma piora nas condições de vida nesses territórios.
‘Sufocados’
A técnica em enfermagem Márcia Glauciane de Araújo Pereira dos Santos, que também trabalha na Terra Indígena Capoto-Jarina, disse que não consegue ver o céu da aldeia Piaraçu há mais de um mês por conta da fumaça causada pelas queimadas.
“A gente vem sofrendo com isso e o cenário está complicado porque as crianças e idosos estão com mais problemas respiratórios”, contou Santos à BBC News Brasil.
A psicóloga Jaqueline Aparício descreve a rotina no posto de saúde localizado na aldeia.
“A rotina agora é de uma grande procura, principalmente por crianças e idosos, que estão com problemas respiratórios. Os anciãos estão sufocados pela fumaça”, disse.
Santos disse que os impactos do fogo na terra indígena não se resumem apenas aos problemas respiratórios.
Encravada em uma área de floresta amazônica razoavelmente bem preservada, aldeia Piaraçu é abastecida com energia levada por uma linha de transmissão que conecta o local à cidade mais próxima.
O problema, segundo ela, é que desde o agravamento dos incêndios na região, o fogo derrubou árvores que romperam os cabos de transmissão de energia e deixaram a aldeia no escuro. Agora, a única eletricidade da comunidade é a que vem de grupos geradores movidos a gasolina ou óleo diesel.
Isso também teve, segundo ela, impacto direto na saúde da comunidade.
“Sem energia, estamos com problema para armazenar medicamentos em ambientes refrigerados. Há pacientes que fazem uso de insulina que também estão enfrentando dificuldades por conta disso”, contou.
Outro impacto das queimadas é sobre o deslocamento de pacientes. Como a aldeia é localizada em plena floresta amazônica, a forma mais fácil de remover pacientes que precisam de atendimento urgente é por avião. Mas como a fumaça encobre a região há mais de um mês, pilotos têm evitado pousar na pista que atende a comunidade.
Ela contou à BBC News Brasil que, na semana passada, uma indígena com nove meses de gestação precisou de atendimento urgente e teve de ser removida da aldeia por terra para a cidade mais próxima. Uma viagem que de avião demoraria pouco mais de uma hora, de carro durou aproximadamente oito horas.
Segundo ela, a indígena e a criança, que ainda não nasceu, estão bem apesar do susto.
Agronegócio e mudanças climáticas
Para a Diretora de Ciência do IPAM, Ane Alencar, os dois principais fatores que causam o crescimento da área queimada em terras indígenas neste ano são: as mudanças climáticas e o avanço do agronegócio sobre esses territórios.
Por um lado, as mudanças climáticas geram estiagens prolongadas e severas como a que atinge o Brasil neste momento.
Isso faria com que regiões como o Cerrado fiquem extremamente suscetíveis ao alastramento de fogo. “Qualquer fagulha e o fogo escapa de controle e pode tomar grandes proporções”, explicou.
Alencar explica que os indígenas também utilizam o fogo como técnica ancestral de manuseio da terra, mas que, historicamente, as queimadas realizadas por eles seriam feitas de forma controlada e adaptada à realidade local. Ela levanta a tese de que, à medida que as mudanças climáticas alteram as condições do solo e da umidade, algumas dessas queimadas poderiam estar saindo de controle.
Apesar disso, ela disse reforçar que, na sua avaliação, a grande maioria dos focos de incêndio que atingem as terras indígenas no Brasil são registrados fora desses territórios e seriam resultado da pressão do agro.
“É importante a gente entender que nós não estamos dizendo que foram os indígenas que colocaram fogo na floresta. Esses territórios são cercados por regiões agropecuárias onde se utiliza muito o fogo”, afirmou.
“Eu diria que grande parte desse aumento na área queimada é resultado dessa pressão que vem de fora para dentro das terras indígenas”, afirmou.
A avaliação é semelhante à do coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Dinamam Tuxá. A Apib é uma das principais organizações não-governamentais que atuam na defesa dos povos originários no país.
Para ele, parte significativa desse crescimento na área queimada é fruto de ações criminosas.
“Para além das mudanças climáticas, temos a ação humana nesse processo e aumento das queimadas. Uma ação humana criminosa que ateia fogo dentro, fora e no limite das nossas terras para promover o avanço do agronegócio”, afirmou.
Mais punição
Tuxá disse avaliar que as ações do governo federal em relação ao avanço das queimadas nesses territórios têm sido insuficientes. Para ele, falta “efetividade” na punição dos responsáveis pelas queimadas.
“O governo tem feito um discurso de conter o avanço do fogo. Temos visto algumas movimentações, mas a nossa análise é de que isso ainda é insuficiente porque precisamos de mais efetividade para conter tanto as mudanças climáticas quanto esses criminosos que ateiam fogo em nossas terras”, disse.
Tuxá disse é preciso que o governo implemente uma estratégia permanente para penalização das pessoas responsáveis por queimadas ilegais.
Em meio às críticas que vem sofrendo nos últimos meses, o governo federal passou a coletar propostas de ministérios e agências como o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para conter o avanço das queimadas. Parte dessas propostas, que ainda não foram formalmente apresentadas, prevê o aumento nas punições a pessoas ou empresas responsáveis por queimadas ilegais.
Para Ane Alencar, do IPAM, teria faltado planejamento ao governo federal para lidar com uma crise do tamanho da que atingiu o Brasil neste ano.
“Esse planejamento e a articulação com os governos estaduais deveria ter começado antes. Acho que esse foi um dos grandes equívocos do governo federal”, afirmou a pesquisadora.
Ela disse acreditar que, além disso, o governo se viu surpreendido com a dimensão da ação criminosa que se seguiu à estiagem. Segundo ela, criminosos estariam aproveitando a seca para atear fogo em áreas onde, normalmente, o fogo não era identificado.
“Acho que teve uma expectativa de que o MMA seria capaz de lidar com esse problema com as forças que normalmente eram mobilizadas, só que a gente visto um número de focos de calor em áreas inusitadas, o que indica que pessoas estão usando esse momento para colocar fogo. Isso tem feito com que nenhum esforço seja suficiente para combater os incêndios”, disse.