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“Atirou para matar”: indígenas Xokleng denunciam ataque na Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ

Nesta quarta-feira (3), policiais federais e peritos estiveram na Aldeia Kakupli para realizar a perícia do local, coletar as provas e o depoimento dos indígenas. Foto: Povo Xokleng

“Os três primeiros tiros foram para cima, os outros foram na altura para acertar as pernas, cintura e cabeça”, conta Ndilli Copakã, ao se referir ao ataque com arma de fogo que a comunidade Xokleng sofreu na noite do último sábado (30), véspera da Páscoa. Foram mais de seis disparos, e as marcas e cápsulas permanecem gravadas nas paredes da casa de madeira que fica a aproximadamente 30 metros da estrada.

Os disparos foram efetuados por volta das 23h30, quando os indígenas já haviam se recolhido para descanso, contra a moradia Ndilli, na Aldeia Kakupli, uma das retomadas na Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, localizada próxima à Reserva Biológica (Rebio) do Sassafrás, município de Itaiópolis, no Alto Vale do Rio Itajaí, em Santa Catarina. No momento dos disparos quatro pessoas dormiam dentro da residência, mas ninguém ficou ferido.

Ao ouvir os disparos, os dois casais – o Ndilli Copakã e sua companheira Rosinei Pedroso, a tia dela e seu marido – buscaram se proteger. Assim que cessaram os disparos, “só aí nós saímos para fora, depois que foram embora, que daí se eles voltassem nós já estávamos do lado de fora da casa para nos esconder no mato”, narra o ancião. Ao ressoar dos disparos, os demais moradores da aldeia se dirigiram ao local.

O ataque ocorreu rápido, “atiraram e saíram embalados” em direção à cidade de Itaiópolis, sem que pudessem ser identificados. Os indígenas não tiveram a oportunidade de confirmar quantas pessoas e nem qual o modelo do veículo. O que ficou foram as marcas de pneu na estrada, e os projéteis no chão e na parede.

Os disparos foram efetuados por volta das 23h30, quando os indígenas já haviam se recolhido para descanso, contra uma das moradias da Aldeia Kakupli. Foto: Cleber Buzatto / Cimi regional Sul

Os indígenas avaliam terem sido alvos de uma tentativa de homicídio. “Essa pessoa atirou para matar, não foi para assustar não”. Os primeiros disparos foram para chamar a atenção, “dá para ter uma noção mais ou menos que quando abrisse a porta seria atingido pelos tiros”, conta o Ndilli ao mostrar as marcas de bala na porta da casa e poucos centímetros na parede ao lado.

Um dos disparos atingiu a porta a 50 cm, na altura das pernas de um adulto. Outro disparo foi na altura de um metro, na altura da cintura: esse tiro deixou a bala cravada na parede. O terceiro “veio na altura da cabeça”, demonstra o ancião Xokleng. Os disparos foram realizados de forma compatível com a estatura de um adulto, “eu acho que foi uma pessoa que conhece aqui, que passa e vê aqui, porque atirou certinho na porta”, conta Rosinei Pedroso.

Além do casal, dona Rosinei conta que sua tia e o marido também dormiam perto da porta na hora dos disparos. “A gente dormia aqui [próximo da porta], eu tinha meu colchãozinho aqui, a minha tia estava lá ao lado do marido, então quando eles deram os tiros eles esperavam que alguém levantasse”, conta a indígena buscando compreender a dinâmica dos disparos. “É uma pessoa que conhece a altura do meu marido, sabe a altura dele, porque aqui na perna, cintura e cabeça é uma pessoa muito boa de mira para pegar simplesmente na porta”, completa Rosinei.

Pela dinâmica dos disparos, à noite – sem iluminação – e ser próximo da rua, “de fato dá a entender que o objetivo não era só assustar, até porque acertar somente a porta e na altura das marcas e dos projéteis, os indígenas estavam na direção dos tiros e ao se levantar seriam atingidos pelos disparos”, relata Cleber Buzatto, missionário do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que foi até a aldeia após o ataque.

O ataque ocorreu rápido, o que ficou foram as marcas de pneu na estrada, e os projéteis no chão e na parede. Foto: Cleber Buzatto / Cimi Regional Sul

Ainda no domingo (31), as lideranças acionaram as autoridades de plantão, pois era domingo de Páscoa. “Fizemos o pedido de segurança para policiamento e não apareceu ninguém no domingo”, conta o cacique presidente da TI Ibirama-Laklãnõ, Setembrino Xokleng.

A comunidade ficou bastante assustada “porque a ação não foi só para assustar, para intimidar as famílias, pelo alvejar dos tiros dá para a gente entender que os disparos foram para vitimar mesmo as pessoas que estão dentro de casa, os disparos foram feitos na porta da casa, dá para entender que foram intencionalmente”, completa o cacique presidente.

No dia seguinte, dia 1º de abril, as lideranças se reuniram com a Procuradora da República de Blumenau, Dra. Lucyana Marina Pepe Affonso, que acolheu as denúncias e acionou a Polícia Federal. Na oportunidade, o povo Xokleng redigiu uma carta onde relata o ocorrido e cobram providências para que os ataques cessem.

No documento entregue à procuradora os indígenas asseguram que “os disparos indicam a intencionalidade de assassinar efetivamente os membros do povo indígena”. Demonstrando preocupação com segurança da comunidade e temendo novos ataques, “pedimos ao MPF [Ministério Público Federal] e a Polícia Federal que investigue a fundo os fatos para identificar e punir as pessoas responsáveis pelo ataque a tiros desferidos contra nossos familiares”, reforça a carta escrita à mão e assinada pelos indígenas.

Nesta quarta-feira (3), policiais federais e peritos estiveram na Aldeia Kakupli para realizar a perícia do local, coletar as provas e o depoimento dos indígenas. A comunidade espera que ao final do inquérito possam ser identificados os responsáveis e possíveis mandantes do atentado que caracteriza uma tentativa de homicídio.

Agravos da Lei 14.701

Em carta entregue às autoridades e peticionado pelos advogados da comunidade Xokleng junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), os indígenas asseguram ter avaliado “junto com os familiares atacados, que a urgência da Lei 14.701/2023, aprovada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, está servindo de incentivo para que esse tipo de violência seja realizada contra nossos familiares”.

Em dezembro de 2023, o Congresso Nacional promulgou a Lei 14.701/2023, também chamada de “Lei do Marco Temporal”, num ato de afronta à Suprema Corte. A norma incorpora uma série de dispositivos que contrariam a Constituição Federal e o julgamento do STF, que ainda em setembro de 2023 já tinha decidido sobre a inconstitucionalidade da tese que hoje fundamenta a Lei 14.701 e assegurando o direito originário dos povos indígenas.

Os disparos foram realizados de forma compatível com a estatura de um adulto, o 3º “veio na altura da cabeça”. Foto: Cleber Buzatto / Cimi Regional Sul

Com a promulgação, a Lei passou a vigorar em sua integralidade, causando insegurança física e jurídica para todos os povos indígenas no Brasil e instaurando uma situação de conflito constitucional. Além de impedir as demarcações e abrir as terras indígenas já demarcadas para a exploração econômica, ela ameaça a vida dos povos e seus territórios.

“A partir do momento que essa Lei 14.701 foi aprovada pelo Congresso não só aqui aconteceu essas tragédias, mas em outras áreas indígenas vem acontecendo, e essa é uma delas. São 100 anos de contato e isso ainda acontece, com essa Lei sendo aprovada, o que pode acontecer ainda é pior do que vem acontecendo”, alerta Setembrino, cacique presidente da TI Ibirama-Laklãnõ.

Preocupados, os Xokleng solicitam à Suprema Corte que declare a Lei inconstitucional, caso contrário poderá haver “até o extermínio dos indígenas no Brasil. Para que não haja mais mortes, porque os Xokleng já foram quase exterminados, e seria bom que o Supremo declarasse inconstitucional essa Lei do marco temporal”, reforça Setembrino.

No documento enviado aos ministros do Supremo os indígenas listam a urgência com que apelam às autoridades, em especial ao STF, “para que declare a inconstitucionalidade da Lei 14.701/2023 fazendo valer, de fato, a decisão tomada por este Supremo Tribunal no Recurso Extraordinário de nº 1.017.365 com caráter de repercussão geral reconhecido”.

Além do casal, dona Rosinei conta que sua tia e o marido também dormiam perto da porta na hora dos disparos. Foto: Cleber Buzatto / Cimi Regional Sul

O ataque sofrido pela retomada Aldeia Kakupli demonstra o quanto é grave a promulgação da Lei, “pois os indígenas correm risco grave de morte e até mesmo casos mais graves que este poderão acontecer novamente”, reforçam a comunidade Xokleng.

Há dez anos as famílias da retomada estão no local e os ataques têm sido constantes na vida dos indígenas, suas plantações e animais. Apesar dos ataques, da violência, “nós vamos ficar trabalhando aqui, não vamos para lugar nenhum, porque não tem onde ir, aqui é o lugar que nós vamos ficar, aqui é nossa casa”, assegura Ndilli Copakã.

Para que possam usufruir de seu território tradicionalmente ocupado, os Xokleng fazem mais um apelo aos Ministros do STF, “retome e finalize o julgamento da ACO 1100 [Ação Cível Originária de nº 1100]”. A ação discute a demarcação de sua terra tradicional.

Rafael Modesto, um dos advogados da comunidade Xokleng, conta que os novos fatos sobre a violência a que o povo Xokleng está submetido foram levados aos autos do processo da ACO 1100, pois tão logo foi promulgada a Lei 14.701/2023, as violências contra as comunidades indígenas aumentaram.

Os Xokleng pediram ao MPF e a Polícia Federal que investigue a fundo os fatos para identificar e punir as pessoas responsáveis pelo ataque a tiros. Foto: Povo Xokleng

Diante da tentativa de homicídio que a comunidade sofreu no feriado de Páscoa, “somado esse fato às audiências públicas ocorridas no Congresso para forçar o poder público a aplicar a Lei do marco temporal, em claro desrespeito à decisão do STF no Tema 1031 (RE 1017365, que também envolve o território do povo Xokleng), levamos as informações ao STF e pugnamos por medida de urgência para garantir a segurança do povo. Os indígenas também reforçam o pedido de que a Corte declare a inconstitucionalidade da Lei 14.701/2023”, explica Rafael, que também é assessor jurídico do Cimi.

Para além dessas medidas adotadas no âmbito da Suprema Corte, as denúncias e solicitações do povo Xokleng foram levadas ao conhecimento da Procuradoria-Geral da República (PGR) e a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão (6ª CCR), para que, de acordo com suas responsabilidades constitucionais de defender as populações indígenas, possam tomar as devidas providências.

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