Coordenadora do relatório anual “Violência contra os povos indígenas no Brasil” do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a antropóloga Lucia Helena Rangel afirma não ter dúvidas de que o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) cometeu crime de genocídio durante os quatro anos de sua gestão. A pesquisadora no campo da etnologia indígena da PUC-SP cita os exemplos das mortes ocorridas nos estados de Mato Grosso do Sul e Roraima, onde os guarani kaiowas e os iânomamis foram os mais afetados, seja por ataques armados no primeiro caso ou a crise humanitária que assolou esse segundo grupo com a invasão de garimpeiros. No total, em todo o país, nos quatro anos de mandato, quase 800 indígenas foram assassinados e outras 3.552 crianças de até quatro anos morreram nesse período.
Lucia Helena se diz “chocada” com os números de mortalidade infantil nas aldeias e destaca a falta de assistência de saúde que afetam as crianças. Em entrevista ao GLOBO, a antropóloga relaciona os principais pontos do relatório e se diz esperançosa de que os próprios indígenas reúnam condições no atual governo para reverter esse quadro alarmante. Ela afirma que vai usar o relatório como denúncia para reforçar outras ações do movimento indígena para enquadrar o ex-presidente pelo crime de genocídio no Tribunal de Haia.
É exagero falar em genocídio quando se avalia os dados das mortes de indígenas?
Não é, absolutamente. Por algumas razões. Você tem situações específicas como em Mato Grosso do Sul, que nitidamente é um genocídio. Então, se a gente projetar no tempo são algumas décadas, de 1970 para cá que o Estado foi sendo ocupado com grandes empreendimentos de agronegócio, com incentivos oficiais do governo do estado e daí você percebe que, sobretudo a população guarani kaiowa, ela correu o risco de ser dizimada. Claro que não desapareceu, pois ela é muito grande, mas o alto grau de mortes , de mortalidade infantil, de crianças morrendo, a fome instaurada, sem terra e sem comida, dá a entender que foi proposital. Se você for levar a ideia do genocídio para o campo das ações voluntárias, ali nitidamente é voluntário.
Mas como se atesta essa prática?
Porque não só o governo, mas também o Estado, como os fazendeiros, e até juízes, negando recursos de vida, à terra, aos indígenas, tem caráter proposital. Querem matar. E muitas manifestações de fazendeiros dizendo que ali eles estão em guerra nos comprova isso. Ali é considerado sim um genocídio. E nesses últimos quatro anos, a gente pode configurar esse episódio genocida. Se você pegar só os dados de mortalidade na infância, esse dado é assustador! 3.552 mortes de crianças entre 0 e 4 anos, de 2019 a 2022.
Mas é possível dizer que o ex-presidente tem alguma culpa sobre isso?
Ele sempre militou na Câmara contra os povos indígenas. Quando ele foi candidato o discurso dele ganhou muita força. Em 2020 você tem o índice mais alto, o ápice da história indígena, de assassinatos. Mas a curva dos assassinatos não varia muito, infelizmente, não. Ela é quase uma reta. E se você for analisar os casos, um a um, você vai ver que os assassinatos cometidos pelas forças oficiais, ou milícias de fazendeiros, aumentou demais nesse período.
Na sua opinião quais foram as principais causas dessa tragédia?
Como você deixa acontecer isso, apesar de todos os apelos que estavam sendo feitos para retirar garimpeiros de área Yanomami, para cuidar dos indígenas na pandemia e do abandono no período da Covid, total abandono do serviço de saúde, abandono do atendimento…as equipes começaram a não ir mais para área, não tinha mais medicamento, a distribuição daquele “kit Covid’ foi surreal. Eles davam aqueles remédios, com cloroqiona, para quem tinha diagnóstico de Covid e não davam para quem tinha diagnóstico de malária. E com o garimpo , a malária cresceu ainda mais . Temos aí uma situação que tem claramente consequências genocidas. Essas inações no campo da saúde são genocidas. Se você somar isso à não demarcação de terras, a liberação de terras indígenas para exploração de garimpo e recursos naturais e grilagem, você tem uma mortandade, uma pressão, uma perseguição, de altos níveis de mortalidade, de insalubridade, de tensão, uma população que foi tensionada ao extremo.
Quais são os estados mais críticos onde se verifica a violência contra os povos indígenas?
Amazônia, Roraima e Mato Grosso do Sul , infelizmente, reúne os piores dados sobre violência, sem contar nos suicídios que atingem sobretudo os jovens, devido às pressões que o povo sofre. Por isso que o Mato Grosso do Sul sempre liderou essa estatística, pois ali os indígenas vivem sob a tensão de violência todos os dias, de 14 a 29 anos é o grosso das mortes. São rapazes na flor da juventude, é aquele menino que está virando adulto para assumir responsabilidades e não tem como completar o período de formação, de rituais. A grande maioria tira suas vidas por enforcamento, amarrados em árvores e também fazem uso de cadarços de sapato.
O que você espera que ocorra com a publicação desse relatório?
Esse nosso relatório, dos quatro anos de mandato, vai reforçar as ações que já foram movidas pelo movimento indígena no Tribunal de Haia para enquadrar o ex-presidente como genocida. Essa é a nossa denúncia.
O que mais você pode destacar das pesquisas feitas pela equipe do Cimi?
Infelizmente são destaques negativos do relatório como os dados de mortalidade infantil , a falta de assistência de saúde que afetam as crianças é uma coisa muito chocante. O primeiro capítulo do relatório, que versa sobre os crimes contra o patrimônio continua focando muito com um grau de destruição que foi aumentando e ele vem acompanhado de requintes de violência. Estamos falando de território para os indígenas, a terra é o grande patrimônio, porque a terra contém a natureza, as plantas, todos os seres vivos, árvores, sua cosmologia e seus encantados. Ela é fonte de sentido. Então você tem toda uma concepção de vida que não separa a terra da natureza e da cultura, elas são o mesmo ambiente. Então é esse patrimônio que a gente fala. Agora por uma definição jurídica e oficial podemos dizer que o patrimônio indígena é da responsabilidade da Funai, que é a terra, os territórios.
A crise humanitária que atingiu os iânomamis também pode ser considerada genocídio também?
É evidente que essa tese do genocídio também serve para os ianomâmis, mais uma vez. Os ianomâmis já foram atacados muitas vezes, mas dessa vez é um ataque maior, mais violento, com requintes de violência muito graves, abuso sexual, mortes de crianças. Olha, tem coisas que a gente não acredita que aconteceu. A gente não acredita que haja um grau de brutalidade humana contra outros humanos tão grande.
De onde parte tamanha violência contra os indígenas? Na sua opinião, o Brasil não tem consideração por seus povos originários?
Eu acho que a nossa marca histórica é a escravidão. A escravidão é uma coisa violenta ao extremo. Tudo aquilo que aconteceu com quase quatro séculos de escravidão , de difamação, acabou por colocar as populações africanas e originárias aqui da nossa terra embaixo de uma violência brutal. A escravidão por si só ela é o máximo da violência, porque ela tira totalmente a autonomia do indivíduo, então essa marca é muito forte na nossa mentalidade. Então, na esteira disso, o racismo contra os indígenas é tão grande que há até no meio das pessoas comuns, digamos assim, um ódio contra os indígenas, que pensam assim: por que eles querem terra? Para quê? Eles não prestam, eles bebem, eles são vagabundos, eles são ladrões, etc.. Então quando a gente tem assim uma mentalidade muito forte nesse sentido, muito voltada para essa população originária, nós temos uma falta de limite, não tem respeito, não tem consideração. Os vemos como se fossem bichos. Então se vai lá, mata, comete barbaridades, e ainda por cima com um governo que incentiva, que diz que “eles querem ser civilizados como nós, então vamos lá, podem entrar, podem tirar madeira, podem garimpar, podem grilar, fazer pasto. Isso tudo incentivados pelo governo, e ainda mais com uma Funai que barbarizou durante esses quatro anos, com decretos e instruções normativas que tentavam dizer que as terras indígenas são as que já estão homologadas, as outras não são, vê se pode? Enquanto isso o presidente afirmava que não iria demarcar mais nenhuma terra. Se isso não for um indício de genocídio, formalizado pelo Estado, eu não sei mais o que é. O estado ocupando e transformando os órgãos do estado em órgão assassinos.
O que esperar desse novo governo?
Esperamos o melhor. Eu acho que o fato de criar um ministério e colocar os indígenas no Ministério dos Povos Indígenas e na Funai já é um grande alento porque cabe aos indígenas construir esse caminho de paz, de respeito, isso está nas mãos deles, então acho que esse governo acerta e nos faz ter esperança. Mas há muito ainda por fazer, principalmente na Funai. Até o momento está positivo, vamos acompanhar a longo prazo. Precisamos agilizar as demarcações já!