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TRISTEZA NA ALDEIA: Por que jovens indígenas se matam mais do que brancos e negros da mesma idade no Brasil

Kunha Poty Rendy’i, 25 anos, cresceu ouvindo histórias de jovens que tiraram a própria vida na Reserva Indígena de Dourados, em Mato Grosso do Sul. Alguns deles ela não conhecia direito, outros eram membros de sua família —perdeu um primo de 16 anos e outro de 18, um ano mais velho que um amigo dela que também foi encontrado morto na aldeia.

A frequência dos casos transformou a tragédia em rotina.

É uma situação triste e de sofrimento que meu povo vive aqui. Mas de tanto acontecer, é como se fosse normal para a gente. Desde criança sabemos que isso ocorre” (Kunha Poty Rendy’i, ativista guarani-kaiowá)

Quando estava com 17 anos, o vy’ae’y, palavra guarani que em português significa “ausência da vontade de viver”, também chegou até Kunha.

Ela se afastou da família e dos amigos. Estava triste, mas não conseguia chorar. Era como se “um espírito do mal” tivesse se apoderado de seu corpo, conta a jovem. Continuava enxergando, mas sua visão parecia borrada, tingida de arapoju (“céu amarelado”, em tradução literal). Não via futuro pela frente.

Em 2015, ficou perto de ter o mesmo fim de tantos jovens que conhecia, mas foi socorrida a tempo por uma vizinha. “Ela disse que eu ainda tinha muito tempo de vida pela frente. E tinha razão”, diz Kunha, que hoje tem 25 anos e é ativista de movimentos juvenis em sua aldeia.

Taxa de suicídio é maior entre jovens

A faixa etária em que as mortes aconteceram na aldeia em que Kunha vive não é coincidência —no Brasil, cerca de 64% dos suicídios entre povos originários ocorre em pessoas com 10 a 24 anos.

O dado foi levantado pela pesquisadora Jacyra Paiva, da Fiocruz, principal autora de um dos estudos mais recentes sobre o assunto, que foi publicado em formato preprint no periódico The Lancet Regional Health – Americas e aguarda revisão.

Nosso estudo, assim como outros prévios, mostra um grave problema de saúde pública que já ocorre há pelo menos 21 anos e com evidência de tendência a aumento nos próximos anos (Jacyra Paiva, que também é especialista em psiquiatria da infância e adolescência)

Um relatório epidemiológico do Ministério da Saúde, publicado em 2017, já tinha mostrado que 44,8% dos suicídios entre os povos indígenas envolviam crianças e adolescentes de 10 a 19 anos, uma porcentagem oito vezes maior do que o observado entre brancos e negros de mesma idade (5,17% em cada).

O perfil dos óbitos é considerado “peculiar”, segundo Jesem Orellana, da Fiocruz Amazônia, que também participou da pesquisa liderada por Paiva. Na população geral, a maior taxa é observada entre pessoas com mais de 70 anos.

“O cenário se inverte com os indígenas e eu acredito que isso se dá muito em função da falta de expectativa do jovem com o amanhã, essas desilusões em relação ao território, à possível inserção socioeconômica e à desestruturação das famílias”, avalia o epidemiologista, que estuda o tema há 20 anos.

O suicídio indígena não é um problema essencialmente médico. É um problema de saúde pública, que perpassa vários determinantes, como conflitos territoriais, racismo estrutural, questões de ordem econômica, política e psicológica (Jesem Orella, epidemiologista da Fiocruz Amazônia)

Miséria dentro da aldeia e preconceito fora dela: A situação dos guarani-kaiowá em Mato Grosso do Sul

O território em que vive Kunha, ou Angélica Quevedo (nome de registro formal), é a maior área de confinamento indígena do mundo, segundo a ONU Brasil. A Reserva de Dourados, em Mato Grosso do Sul, tem cerca de 3.500 hectares, onde habitam quase 20 mil indígenas dos povos guarani-kaiowá e nhandeva, em sua maioria, e os aruak-terena.

Para Kunha, as condições de vida na reserva “causam tristeza no jovem”, especialmente nos moradores da aldeia Bororó, povoada principalmente pelos guarani-kaiowá.

Moradores relatam falta de saneamento básico e acesso limitado à água e eletricidade. A maioria das famílias vive em barracos de madeira. Espaços de lazer para a juventude são quase inexistentes.

Também não existe terra suficiente para garantir o cultivo de alimentos para todos. Os indígenas reivindicam áreas vizinhas ao território como limites destinados a eles originalmente. Ao mesmo tempo, a região é alvo de disputa de fazendeiros do entorno do município de Dourados, um dos maiores produtores de grãos do estado.

A situação precária leva muitos jovens a buscarem emprego na cidade, a menos de 20 km de distância, onde as oportunidades são escassas e o preconceito é grande para quem tem traços indígenas.

Só para citar um exemplo, eu trabalhava em um bar chique e toda vez que entravam donos de fazendas, minha supervisora chamava as outras garçonetes, que eram brancas, para atender a mesa. Elas levavam os drinques, e eu limpava o chão. (Kunha Poty Rendy’i, ativista guarani-kaiowá)

O DSEI-MS (Distrito Sanitário Indígena de Mato Grosso do Sul) afirmou que, embora haja a necessidade de avanços na contenção do suicídio no estado, o órgão “tem executado importantes ações no território e realizado controle epidemiológico da situação”. Exemplos citados foram ações educativas e o monitoramento semanal dos casos e tentativas de suicídio..

Citou ainda parcerias como a com a Raps (Rede de Atenção Psicossocial), participação direta da comunidade como rede de cuidado e qualificação e capacitação dos profissionais para o desenvolvimento de suas atividades. Segundo a pasta, responsável pela assistência básica em saúde a cerca de 80 mil indígenas, atualmente há dez psicólogos na região. Dourados tem o maior número: três.

Por que acabar com a vida?

Com o suicídio, diz Kunha, os jovens pensam em acabar com a dor. Querem voltar ao “lugar de origem”, para onde os guarani-kaiowá acreditam que o seu espírito vai após a morte.

É o lugar de onde vieram, “onde você vive bem, com muitos recursos, e não tem os problemas que tem aqui”, descreve o antropólogo Tonico Benites, que pertence à etnia. “Quando você fica em desespero, é para esse lugar que quer ir.”

O gatilho para que Kunha decidisse acabar com a vida surgiu no dia em que foi expulsa de casa pelo padrasto e ficou sem ter para onde ir. “Ele bebia muito e batia tanto em mim quanto na minha mãe.”

A venda de bebidas alcoólicas em terras indígenas é proibida pela Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), mas as pessoas conseguem comprar o produto clandestinamente.

A ativista encontrou alívio nos rituais de seu povo. “Fui na nossa casa de reza, e aos poucos meu pássaro foi voltando.”

Do dia do nascimento até a morte, os guarani-kaiowá acreditam que são acompanhados por pássaros guardiões, chamados de mokoi e gwyra, que têm a missão de proteger o seu espírito.

“Quando você está triste ou doente, eles se assustam e vão embora.” Com os guardiões longe, a pessoa fica mais vulnerável ao mal e pode ter pensamentos ruins. “Aí fazemos reza para o pássaro voltar e, com ele, a felicidade retorna.”

Conversas com uma psicóloga na universidade também ajudaram. Mas o que mais suavizou o fardo foi entrar para movimentos que agrupam jovens na aldeia. “Até hoje digo para eles: ‘Vocês me tiraram do meu mundo escuro’. Porque eu comecei a falar dos meus problemas e outras pessoas também falavam sobre isso.”

Quando o jovem guarani-kaiowá pensa em se suicidar, ele pensa em muita coisa. Que não tem terra para viver, que não vai conseguir emprego porque é indígena, que tem conflitos com a família, que foi violentado. Muitos também fazem isso porque bebem muito ou usam drogas. São vários motivos em um só. (Kunha Poty Rendy’i, ativista guarani-kaiowá)

Cacique aponta falta de terra e escola como agravantes

Para o historiador Clóvis Brighenti, membro do Cimi Regional Sul, o pano de fundo vivido pelos guarani-kaiowá no sul de Mato Grosso do Sul é, em certo aspecto, semelhante ao dos avá-guarani no oeste do Paraná, onde a organização calcula que houve ao menos 14 casos de suicídio em 2021 —o maior já observado no estado.

Brighenti diz que, em ambos os espaços, há um “desequilíbrio” no modo de vida desses povos.

“São comunidades grandes em que diferentes famílias extensas [que reúnem três gerações] precisam conviver num mesmo ambiente, diferentemente do modo tradicional de vida deles, porque falta espaço”, avalia o também professor de história da Unila (Universidade Federal da Integração Latino-Americana). Ele destaca que, segundo levantamento do Cimi, há na região sul cerca de 5.000 indígenas sem-terra. Em 2020*, o governo paralisou estudos para a demarcação de territórios no oeste do Paraná.

Viver em territórios não demarcados ou em retomadas é uma das coisas que o cacique Celso Japoty Alves, da Terra Indígena Ocoi, em São Miguel do Iguaçu (PR), diz que prejudica o bem-estar de comunidades na região —mas não é a única. Ele reclama que faltam escolas indígenas em terras ainda não demarcadas.

“Também precisamos de escolas indígenas dentro dos nossos tekohá [como os guarani chamam a terra onde vivem seus costumes], porque nossas escolas protegem as crianças do preconceito e ensinam a nossa cultura”, diz.

Acesso precário aos serviços de saúde, alto consumo de álcool e drogas e violência dentro e fora das aldeias também são pano de fundo para a tragédia recente que “assustou mães, pais e jovens”, diz o cacique Celso, para quem o isolamento causado pela pandemia de covid-19 agravou a vulnerabilidade dos mais novos na época.

O VivaBem procurou o DSEI Litoral Sul para pedir dados e um comentário sobre a situação, mas não houve retorno até a publicação da reportagem.

*A portaria 418 anulou os processos de demarcação da Terra Indígena Guasu Guavirá, que é formada por 15 aldeias de comunidades avá-guarani —em 17 de abril deste ano, após recomendação do Ministério Público Federal, a Funai voltou atrás e suspendeu os efeitos da portaria, mas até a conclusão desta reportagem, um imbróglio envolvendo uma Ação Civil Pública movida pelo município de Guaíra ainda impedia a retomada da demarcação.

Projetos tentam tirar jovens do “limbo existencial”

A antropóloga Maria Lourdes de Alcântara diz que jovens indígenas vivem uma espécie de “limbo existencial”. Segundo ela, muitos dos que não têm outra opção senão trabalhar na cidade voltam para a aldeia com novos costumes: continuam falando a língua originária, mas decidem não mais casar entre os 14 e 18 anos, prática tradicional entre os guarani, ou introduzem novas tecnologias na aldeia, como o celular, o que causa estranhamento entre os seus pais e avós.

Ela, que fundou a AJI (Associação dos Jovens Indígenas), organização não governamental que oferece atividades para adolescentes de 10 a 18 anos na aldeia Bororó (MS), acredita que fortalecer os laços intergeracionais pode diminuir a sensação de falta de pertencimento.

Quando os jovens tomam a frente de um fazer que inclui defender sua cultura, passam a ter um lugar de pertencimento e os pais passam a admirá-los. Sentem que têm um lugar na sociedade e o risco de suicídio cai. (Maria Lourdes de Alcântara, antropóloga)

Nas regiões do Alto e do Médio Solimões, no Amazonas, a antropóloga Josiane Otaviano Guilherme, da etnia tikuna, também aposta na valorização da cultura indígena como um fator de prevenção ao suicídio.

Em 2015, ela criou o Projeto AgroVida Naãne Arü Mãüum – Terra e Vida, iniciativa filantrópica que busca recuperar a culinária, o uso de plantas medicinas e a agricultura familiar indígena. “A ideia é resgatar a cultura que está se perdendo e mostrar que os jovens são guardiões do território”, diz. Segundo ela, 150 jovens, muitos dos quais antes “estavam na droga”, agora fazem parte da iniciativa. “Eles já são cientistas da natureza, só é preciso lembrá-los do que o mundo tenta fazer com que esqueçam.”

Jovem pesquisa o que pode prevenir suicídio em São Gabriel da Cachoeira

Em São Gabriel da Cachoeira (AM), uma coisa sempre intrigou Geana Batista Luciano, 24, ou Ciusy (“pássaro”, na língua nheengatu): jovens de sua etnia, a baniwa, pareciam se suicidar menos do que os de outras etnias, como os tukanos*. Ela tenta entender isso em seu mestrado na UFAM (Universidade Federal do Amazonas). Abaixo, Geana compartilha o que percebeu até o momento:

“Pelas entrevistas que já fiz, posso dizer que um ponto em comum que apareceu em quase todos os relatos dos jovens, quando eu perguntava quais eram os fatores que faziam com que eles valorizassem a vida, foi ter o apoio familiar e dos amigos.

A questão cultural é outro ponto forte. Lembro de um jovem, por exemplo, que nasceu em uma comunidade no interior de São Gabriel, mas precisou morar na cidade para estudar. Poder visitar os pais e continuar praticando os rituais e a cultura dos mais velhos era muito importante para ele.

Os baniwa viverem em comunidades de cabeceira, mais distantes do município, também parece ser um fator protetor contra interferências externas do estado em sua cultura. Nessas comunidades, é menor a presença de bebidas alcoólicas e há menos empresas querendo explorar, em comparação com as terras que ficam mais perto da cidade, onde vivem os tukanos e baré, que têm mais casos de suicídio.

Também percebi que os jovens que bebem menos têm menor risco de ter comportamentos suicidas.

Mas o problema ainda é algo muito obscuro e nebuloso. Então, muitas famílias, quando algum familiar se mata, não gostam de falar sobre isso e até escondem os casos, o que dificulta ainda mais entender a situação”.

*Não existem dados oficiais sobre taxas de suicídio em etnias específicas, pois esses dados não estão disponíveis no SBIM (Sistema Brasileiro de Informações sobre Mortalidade).

Questão de saúde pública

Para Jesem Orellana, da Fiocruz, o aumento do desmatamento ilegal e a paralisação de demarcação de territórios durante o governo de Jair Bolsonaro podem ter agravado o problema. Estudo que ainda aguarda revisão indica que a região Norte, mais especificamente o estado do Amazonas, tem apresentado “importante aumento nas taxas de suicídio nos últimos anos”.

Embora as notificações tenham subido na região, o artigo cita outros dois fatores que também podem estar influenciando os resultados:

  • As terras indígenas amazônicas se tornaram recentemente alvo de crescente atividade mineradora;
  • Durante a gestão Bolsonaro, não houve demarcações de terras indígenas e caíram os investimentos na Funai, responsável pela salvaguarda dos direitos indígenas.

Orellana descreve o suicídio na população indígena no país como um “fenômeno grave, mas invisibilizado”: as políticas públicas de prevenção adotadas até hoje não foram robustas o suficiente e faltam estudos para entender o problema.

“Todo mundo sabe que é algo grave, mas não há registro na história do Brasil de um estudo nacional e abrangente sobre o suicídio indígena.”

Em nota, a nova gestão da Sesai (Secretaria Especial da Saúde Indígena), sob o comando de Weibe Tapeba —primeiro indígena a assumir a função—, afirmou que “a linha de cuidado integral vem sendo revisada e aprimorada” pelo órgão, e envolve a atuação de profissionais que atuam diretamente com a saúde indígena, além de familiares e cuidadores, com o objetivo de desenvolver estratégias para povos em situação de risco.

Ainda segundo a pasta, o Ministério da Saúde também vem trabalhando em conjunto com as equipes multidisciplinares de saúde indígena “estratégias direcionadas à atenção psicossocial desses povos”, com o objetivo de prevenção ao suicídio, a partir das linhas de cuidado integral.

Em relação ao consumo de álcool e outras drogas, a pasta disse que existe um monitoramento do uso prejudicial do álcool e ações orientadas pela estratégia de redução de danos, incluindo atendimentos psicossociais individuais, familiares e coletivos e ações de educação em saúde.

O VivaBem também procurou o Ministério dos Povos Originários, criado em 11 de janeiro de 2023 pelo presidente Lula e sob gestão da ministra Sonia Guajajara, mas não houve retorno até a conclusão da reportagem.

VOCÊ NÃO ESTÁ SÓ

Caso você tenha pensamentos suicidas, procure ajuda especializada como o CVV (www.cvv.org.br) e os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade. O CVV funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil.

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