A taxa de suicídios entre indígenas no Brasil subiu neste início de século e se manteve superior à da população geral. De acordo com o mais amplo levantamento sobre o tema, publicado em setembro na revista The Lancet Regional Health – Americas, a proporção de mortes por suicídio entre os integrantes dos povos originários era de 9,3 casos em cada grupo de 100 mil indivíduos em 2000; em 21 anos o número quase dobrou, chegando a 17,6 por 100 mil.
No mesmo período, a taxa média de suicídio na população brasileira também cresceu, mas menos. Passou de cerca de 4,6 para 6,4 mortes por 100 mil pessoas – um aumento de aproximadamente 39%. Como efeito da elevação em ritmos desiguais, a proporção de suicídios entre indígenas é hoje 2,7 vezes maior do que na população geral.
Resultado de uma cooperação entre pesquisadores de diferentes unidades da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, o estudo publicado em setembro é o primeiro a dimensionar o problema entre os indígenas em nível nacional. Levantamentos anteriores já indicavam que a taxa geral de suicídio na população brasileira, considerada baixa em comparação com a de outros países, encontrava-se em ascensão. Havia, no entanto, lacunas nos dados referentes aos povos originários brasileiros. Os trabalhos que existiam mensuravam o problema em estados específicos e em períodos mais curtos, escreveram os autores do artigo.
No levantamento atual, a psiquiatra Jacyra de Araújo e colaboradores mapearam a evolução recente do autoextermínio no Brasil a partir dos números registrados no Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde. Eles, primeiro, identificaram o total de indivíduos que tiraram a própria vida de 2000 a 2020 tanto entre os indígenas quanto na população geral brasileira. Depois, dividiram o número obtido pelo total de indivíduos de cada grupo (indígenas e população geral), calculado com base no Censo de 2010 – o mais recente então disponível, que registrava 196,4 milhões de brasileiros, dos quais 897 mil eram indígenas. O número absoluto de indivíduos foi corrigido para cada ano seguindo as projeções do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Desse trabalho, emerge outra conclusão inquietante. Ao menos nesse início de século, o ato de tirar a própria vida, indicativo de desamparo profundo e muitas vezes associado a problemas de saúde mental como a depressão, tem se mostrado um problema mais marcante entre os jovens. Dos 2.021 casos de suicídio entre indígenas registrados no período, 64% ocorreram entre indivíduos com menos de 24 anos e 68% entre solteiros – quase sempre (90%) por enforcamento, sufocação ou estrangulamento. Na população geral, o risco de suicídio é maior acima dos 60 anos de idade.
Outro ponto importante é que as taxas encontradas nessas populações, apesar de alarmantemente altas, podem estar subdimensionadas. “A qualidade do SIM melhorou nos últimos 20 anos, mas há indícios de que existe subnotificação de suicídios, o que é comum no mundo todo devido ao estigma e à dificuldade de estabelecer se havia intenção de morte”, explica Araújo, que é pesquisadora associada ao Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs) da Fiocruz, na Bahia, e primeira autora do estudo. “As taxas reais podem ser ainda maiores do que as obtidas nesse estudo”, afirma.
Um padrão peculiar chamou a atenção dos pesquisadores. As taxas de suicídio variaram muito entre as regiões brasileiras, mesmo entre aquelas com grandes populações indígenas. Por exemplo, elas eram várias vezes mais elevadas no Centro-Oeste e no Norte do país – respectivamente, a terceira e a primeira região com maior número de descendentes dos povos originários – do que no Nordeste, que concentra a segunda maior população indígena do Brasil. “O suicídio indígena ocorre em todas as regiões e em diversas etnias, mas ele se apresenta desproporcionalmente maior em determinados estados”, detalha o epidemiologista Jesem Orellana, pesquisador do Instituto Leônidas e Maria Deane, unidade da Fiocruz no Amazonas, e coautor do estudo, que contou com a participação de colaboradores da Escola Médica da Universidade Harvard e financiamento dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), ambos nos Estados Unidos.
Seguindo uma tendência oposta à geral, a taxa de suicídios entre indígenas baixou de 46 por 100 mil em 2000 para 34 por 100 mil em 2020 nos estados do Centro-Oeste, onde, segundo o Censo de 2010, viviam 143,4 mil descendentes dos povos originários (16% da população indígena). Apesar da queda importante, no entanto, essa taxa permanece muito superior à média nacional. Já na região Norte, habitada por 342,9 mil indígenas (38,2% do total), a proporção de mortes autoinfligidas cresceu mais de 10 vezes no período: saltou de 2,7 para 29 casos por 100 mil. O Nordeste, lar de 232,7 mil indígenas, também viu a taxa crescer, mas muito menos. Ela passou de 1,4 para 4,8 mortes por 100 mil, um número bem inferior à média nacional.
Os estados com taxas mais elevadas são Mato Grosso do Sul e Amazonas. No primeiro, onde viviam 77 mil indígenas, elas alcançaram o pico assustador de 105 por 100 mil em 2005 e nunca foram inferiores a 43 por 100 mil. Com 184 mil descendentes dos povos originários, o Amazonas testemunhou essa taxa sair de 0,99 em 2000 para o pico de 45 em 2014 – em 2020 era de 38,6 por 100 mil. “Quando se excluem os dados de suicídio indígena desses dois estados, a taxa entre indígenas se torna praticamente idêntica à da população brasileira geral”, afirma Orellana.
A realidade brasileira delineada no artigo da The Lancet Regional Health – Americas não é muito distinta da observada em outros países. Em um trabalho de revisão publicado em 2018 na revista BMC Medicine, pesquisadores canadenses compilaram dados de 99 artigos científicos sobre suicídio indígena em mais de 30 nações e territórios. Concluíram que, de modo geral, as taxas de morte autoimposta são frequentemente mais elevadas entre as populações de povos originários do que entre as não indígenas, em especial em países como Brasil, Canadá e Austrália.
Embora o grupo da Fiocruz não tenha se debruçado sobre as razões que levam os indígenas ao suicídio, outros trabalhos já deram algumas pistas. Em um artigo de revisão publicado em 2020 na Revista Panamericana de Salud Pública, o grupo coordenado pelo psicólogo Maycoln Teodoro, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), elencou como causas frequentes: a pobreza, os baixos indicadores de bem-estar, os fatores históricos e culturais, a desintegração das famílias e a falta de sentido na vida.
Invasões de suas terras e a expulsão do território em que originalmente viviam, além da degradação do ambiente e de mudanças forçadas nos hábitos de vida, são fatores que acarretam a chamada “morte cultural”, outro potencial indutor do comportamento suicida.