Na memória da ativista Alessandra Munduruku, o mercúrio carrega o peso de gerações ameaçadas. Para ela, a questão não é abstrata nem distante: começa no próprio corpo. “Quando eu ouço falar sobre o mercúrio, me vêm muitas memórias, muitas imagens. A primeira questão é o útero da mulher. Como é que o útero da mulher, o nosso útero, vai estar daqui a 50 anos? O leite materno sendo envenenado, nossos filhos sendo contaminados por mercúrio. Isso, para nós, é muito grave”, desabafou.
A fala emocionada marcou a cerimônia de lançamento do Manual Técnico para o Atendimento de Indígenas Expostos ao Mercúrio no Brasil, realizada na quarta-feira (28/05), na Casa Civil, em Brasília, e representou um alerta para as autoridades presentes. Um pedido para que se olhe para as consequências humanas da contaminação, não apenas como estatística, mas como tragédia que afeta todo o planeta.
A contaminação por mercúrio decorrente do garimpo é um problema antigo no Brasil. A atividade reflexo da mineração do ouro causa fortes impactos ambientais sobretudo na região norte do país. Diante desse cenário, o manual, o primeiro do tipo no país, surge como resposta concreta à crise sanitária. Elaborado pela Fiocruz e pela Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde, com apoio do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), o documento reúne diretrizes clínicas para diagnóstico e tratamento de pessoas intoxicadas, além de fluxos de atendimento ajustados às realidades culturais e territoriais dos povos indígenas.
A proposta é qualificar a resposta do Estado, unindo conhecimento técnico e escuta sensível, com base nos princípios da autodeterminação, da dignidade e do direito à consulta prévia, livre e informada, disse a ministra Sonia Guajajara na solenidade de apresentação da publicação. O manual, segundo ela, representa uma “importante entrega, construída a muitas mãos” e “um avanço significativo na resposta do Estado brasileiro à situação de saúde pública vivenciada por diversas comunidades da região”.
“Sabemos que a exposição ao mercúrio, decorrente principalmente da atividade do garimpo ilegal, traz consequências graves e duradouras para a saúde. Por isso, esse manual também é um instrumento de fortalecimento da rede de atenção à saúde indígena, especialmente nas regiões onde a vulnerabilidade é maior”, disse.
“A atuação integrada entre ministérios, instituições de pesquisa, universidades e organizações indígenas mostra que é possível construir soluções sólidas, respeitosas e baseadas em evidências. Nosso compromisso, enquanto governo, é garantir que este manual chegue às mãos de quem mais precisa: as equipes de saúde que atuam na ponta, nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), nas Casas de Apoio à Saúde Indígena (Casais), nos polos-base e nas aldeias. E, mais do que isso, que ele seja colocado em prática.”, completou a ministra.
O secretário especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, Weibe Tapeba, também avalia que o manual representa um marco no enfrentamento do problema. “Vivemos um momento de renovação e de proposição de uma nova Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, baseada na diretriz do cuidado integral. O manual demonstra a preocupação do Estado brasileiro com as populações indígenas, certamente o grupo mais vulnerabilizado em razão da incidência da alimentação contaminada e da presença do garimpo ilegal e do mercúrio nos territórios”, explicou.
A presidenta da Funai, Joenia Wapichana, também participou do evento e destacou a importância de valorizar a ciência como estratégia para superar o problema. “A ciência tem papel essencial na superação dos grandes desafios que enfrentamos. […] Por isso, é preciso incentivar cada vez mais a formação de pesquisadores indígenas. Temos conhecimentos próprios, que ainda não foram sistematizados e publicados, mas que são extremamente importantes para enfrentar os desafios do presente”, afirmou.
Atenção Sensível
O manual reconhece os saberes e contextos culturais dos povos atendidos, buscando orientar o atendimento sem desrespeitar as formas próprias de cuidado. Segundo Ana Claudia Vasconcellos, uma das coordenadoras do projeto, a proposta surgiu justamente da escuta direta às comunidades. “Durante nossos trabalhos de campo com os povos Munduruku e Yanomami, percebemos que muitos desconheciam como o mercúrio chegava a seus corpos e nem os profissionais sabiam como agir. Por isso, decidimos elaborar um material que apoiasse, de forma prática e sensível, às equipes de saúde”, explicou.
No total, mil exemplares impressos do manual serão distribuídos em todo o país. Segundo estudos científicos que embasaram sua elaboração, as Terras Indígenas Kayapó, Munduruku e Yanomami estão entre as mais afetadas pela atividade garimpeira ilegal de ouro. O mapeamento aponta que a área garimpada ilegalmente chega a 13,7 mil hectares na TI Kayapó, 5,5 mil na TI Munduruku e 3,3 mil na TI Yanomami. Com base nesses dados, a primeira fase de implementação priorizará os DSEIs Amapá e Norte do Pará, Yanomami, Rio Tapajós e Kayapó — regiões que concentram os maiores níveis de contaminação por mercúrio e onde os impactos à saúde das populações indígenas são mais severos.
Materialização de um compromisso
A secretária adjunta da Secretaria de Informação e Saúde Digital do Ministério da Saúde, Maria Aparecida Cina da Silva, destacou o impacto prático da obra. “Ao ler o manual, senti como se ele segurasse na mão do profissional de saúde, conduzindo-o passo a passo no atendimento às comunidades. É como se dissesse: ‘Estamos juntos com você”, avaliou.
No mesmo caminho, Adalberto Maluf, secretário de Meio Ambiente Urbano, Recursos Hídricos e Qualidade Ambiental do Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas (MMA) entende que o manual é uma ferramenta essencial. “Sua importância está não apenas na padronização de protocolos e orientações às equipes de saúde, mas também na capacidade de informar os povos indígenas sobre práticas que ajudam a reduzir a exposição ao mercúrio — como a escolha de espécies de peixes mais seguras e os períodos de maior risco”, disse.
O governo federal tem intensificado as ações de desintrusão para combater o garimpo ilegal e devolver o usufruto dos territórios aos povos indígenas. Tais ações já foram feitas em territórios Munduruku, Yanomami e mais recentemente na TI Kayapó. No entanto, mesmo após a retirada dos invasores, os impactos, como a contaminação mercurial, persistem e exigem medidas contínuas de saúde e saneamento.
Para Janine Ginani, secretária adjunta da Secretaria de Articulação e Monitoramento da Casa Civil, o manual materializa um compromisso interministerial para enfrentar um problema pós-desintrusão. Segundo ela, as ações — uma pauta prioritária para o presidente Lula e para o Estado brasileiro — revelam uma realidade complexa que pode afetar todos nós.
“O mercúrio é um contaminante persistente e volátil. Não está confinado aos territórios indígenas. Ele circula pelo ar, pela água, e ultrapassa fronteiras. A contaminação que começa na Terra Indígena Yanomami pode alcançar outras regiões, outros países. Pesquisas já detectaram vestígios de mercúrio proveniente de garimpos ilegais no Brasil em solo europeu. Estamos, de fato, em um mundo só e todos nós somos afetados”, concluiu.