No dia em que, em dezenas de caminhonetes, homens armados espancaram indígenas Guarani Kaiowá, uma antropóloga, um engenheiro florestal e um jornalista canadense como retaliação à ocupação do território Pyelito Kue, fazendeiros se reuniam na mesma cidade de Iguatemi (MS) para um evento com o tema “Como defender seu patrimônio dos riscos atuais”.
Organizado pelo braço local do Movimento Endireita Brasil (criado por Ricardo Salles), o evento em 22 de novembro defendeu o uso da força contra ocupações de terra e teve palestras dos bolsonaristas Wilson Koressawa, Wesley Loureiro e Marcus Torres.
Respectivamente, os temas das exposições foram “Proteção da propriedade conforme termos legais e como defender seu patrimônio de possível invasão”; “Aplicação dos métodos de defesa” e captação de recursos para “políticas protetivas da propriedade e da empresa”; e “Utilização do poder financeiro em prol das propriedades urbanas, rurais e empresas”.
‘Milícia privada’
No último 5 de dezembro, em um vídeo nas redes sociais, um dos palestrantes, o ex-juiz Wilson Koressawa, diz que fez uma representação na Justiça “para evitar que os produtores rurais de Iguatemi (MS) fossem presos em flagrante delito enquanto estavam se defendendo dos invasores”.
“Há uma investigação que está sendo feita, ao que tudo indica, pelo Ministério Público Federal e pela Polícia Federal para tentar caracterizar que estes produtores rurais estão organizando-se em uma milícia privada”, diz Koressawa, que se candidatou a deputado federal por Minas Gerais em 2022 pelo PTB, então partido de Roberto Jefferson, mas obteve apenas 354 votos.
A iniciativa na Justiça, diz ele, é para que fazendeiros “não fossem presos em flagrante no momento em que se reuniam para planejar de que forma se defenderiam dos invasores”. No vídeo, Koressawa se explica, dizendo que o que faz é divulgar que produtores rurais podem “se defender daqueles que praticam crime de esbulho”.
Defesa da violência para ‘proteger a propriedade’
Em um vídeo anterior, de 27 de novembro, Koressawa comenta de sua presença recente no Mato Grosso do Sul para tratar da “possibilidade legal do uso da força e da violência”.
Em outro vídeo postado também em 27 de novembro por Wesley Loureiro no Instagram, Koressawa faz uma palestra na cidade de Toledo (PR), em um salão com um banner do Conselho Comunitário de Segurança Rural (Conseg) e outro do Sindicato Rural do município.
Para uma plateia que inclui uma mulher com a camisa da Polícia Civil do Paraná, o ex-juiz cita trechos da Bíblia e defende o uso da violência para a proteção de propriedades rurais.
Procurada, a Polícia Federal confirmou que um inquérito apura os fatos e que “a fase investigativa de qualquer procedimento policial segue em sigilo”.
A retomada, o ataque e ameaças atuais
O tekoha (lugar onde se é, em guarani) Pyelito Kue – sobre o qual está, entre outras, a Fazenda Maringá, de propriedade de Ranieli Pitol – integra a Terra Indígena (TI) Iguatemipeguá I. Este território está identificado e delimitado pela Funai desde 2013. Com o processo demarcatório estagnado desde então, no entanto, um grupo de indígenas retomou parte da área em 18 de novembro.
Cercados e espancados por dezenas de homens que são referidos pelos indígenas como “pistoleiros” e “fazendeiros”, os Guarani Kaiowá conseguiram voltar para aldeia só no dia 23 de novembro, bastante machucados.
Um dia antes, o fotodocumentarista canadense Renaud Phillipe, a antropóloga Carolina Mira e o engenheiro florestal Renato Farac tentaram chegar ao local para averiguar as denúncias de violência que já circulavam, mas na estrada foram interpelados, roubados e agredidos por este grupo de homens, alguns dos quais encapuzados. Renaud teve uma costela quebrada. A violência contra os três teve grande repercussão na imprensa.
Ao Brasil de Fato, Kaique*, liderança Guarani Kaiowá de Pyelito Kue, relatou que, após os ataques de 22 de novembro, a comunidade tem sido vigiada por drones e indígenas ameaçados por funcionários das fazendas localizadas no território delimitado pela Funai. Além da Maringá, as Fazendas Cachoeira, Santa Rita e Vera Cruz estão sobrepostas à TI.
“Outro dia na estrada fomos abordados por dois pistoleiros, vieram de moto. Tinham pistolas e também um rifle. Perguntaram como é que a gente fez retomada na fazenda sem autorização. Nós falamos que não precisamos de autorização de ninguém para retomar nosso tekoha”, conta Kaique.
Segundo ele, o grupo de indígenas teve as sacolas revistadas e um celular e dois radiocomunicadores roubados. Em seguida, foram escoltados até a entrada da aldeia. “Falaram para nós: ‘se vocês passarem de novo por esse pasto, nós vamos pegar vocês'”, diz Kaique.
Agentes do Departamento de Operações de Fronteira (DOF), vinculado à Polícia Militar do Mato Grosso do Sul, também estão, segundo o indígena, observando de perto os movimentos da comunidade. “Não sei o que o DOF quer de nós”, ressalta Kaique. “Outro dia abordaram algumas pessoas, perguntaram quem era o cacique”, conta.
Em 22 de novembro, pouco antes de Mira, Renaud e Farac se depararem com seus agressores, eles também encontraram uma guarnição do DOF. De acordo com Carolina, os policiais perguntaram quem eles eram, aonde iam, negaram que havia algo de anormal ali e riram quando a antropóloga disse que a Força Nacional estava a caminho para averiguar as denúncias de violência no local.
“A gente está vivendo assim”, resume Kaique: “ameaçados. Porque depois desse conflito os fazendeiros ficaram muito furiosos. Mas a gente não vai desistir de batalhar por nossa terra”.
Carolina Mira e Renaud Phillipe afirmaram, em nota enviada ao Brasil de Fato, que há anos coletam relatos sobre conflitos de terra no Mato Grosso do Sul. “Mas foi no dia 22 de novembro que nos deparamos com a brutalidade dos ruralistas, com a conivência da Polícia Militar e outros agentes, que agora estão sob investigação.”
“Em plena via pública, fomos vítimas de crimes graves, como sequestro, tortura, roubo qualificado e outros atos brutais, o que teria sido de nós se não tivéssemos fugido?”, questionam Mira e Phillipe, que preparam um documentário juntos.
“O que mais choca”, seguem os cineastas, “é como esses agressores se sentem tão livres, tão certos da impunidade. Do outro lado da cena, os Guarani Kaiowá estavam sendo torturados de maneiras indescritíveis”.
“Essa articulação entre fazendeiros, forças policiais, jagunços e outros, aliada à impunidade”, salientam Mira e Phillipe, “cria um ambiente propício para a perpetuação da violência e a violação dos direitos dos povos indígenas”.
* Nome alterado para preservação da fonte.