Não é todo dia que a Organização das Nações Unidas emite um alerta importante sobre políticas internas de um país. Mas quando o faz, é porque algo está realmente errado. No final de fevereiro, relatores especiais da ONU classificaram a proposta do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), como um “grande retrocesso” para os direitos indígenas, a proteção ambiental e a política climática. A reação internacional não poderia ser mais clara: estamos diante de uma tentativa de legalizar o ilegal, de negociar o inegociável. E, no centro dessa tempestade, está um nome que há décadas habita o noticiário jurídico-político brasileiro: Gilmar Mendes, o mesmo magistrado que, em 2023, votou contra o marco temporal no STF, mas agora parece articular nos bastidores um acordo que ameaça anular sua própria posição.
Para entender a gravidade, é preciso fazer uma breve retrospectiva. Em setembro de 2023, o STF declarou inconstitucional o Marco Temporal — tese que restringe a demarcação de terras indígenas apenas a áreas ocupadas antes de 5 de outubro de 1988, data em que foi promulgada a Constituição Federal. Uma vitória histórica, celebrada por lideranças como a cacica Juma Xipaia, que na época declarou à Folha de São Paulo: “Finalmente, a justiça reconhece que existimos antes do Brasil”. Mas o Congresso, pressionado pela bancada ruralista, aprovou uma lei reinstaurando o marco, ignorando o STF. Agora, Mendes propõe uma “solução” que, na prática, parece mais uma armadilha: extinguir o Marco Temporal em troca de medidas como mineração em terras indígenas (TIs), entraves à demarcação e até a remoção de comunidades sob o pretexto de “paz social”.
Não é difícil enxergar o jogo de espelhos aqui. Enquanto o STF tenta se equilibrar entre a Constituição e as pressões políticas, Mendes — figura que já foi chamada de “juiz de ocasião” por críticos — parece querer reescrever as regras do jogo. Mas a que custo?
A proposta de Mendes inclui uma cláusula perversa: a possibilidade de remover indígenas de seus territórios tradicionais caso haja “conflitos fundiários” ou para garantir a “paz social”. Em troca, oferece “terras equivalentes”. Ora, mas o que seria uma “terra equivalente” para um povo cuja existência está entrelaçada com rios sagrados, montanhas ancestrais ou florestas que guardam a memória de seus antepassados? Pergunte aos Guarani Kaiowá, expulsos de suas tekohas (terras tradicionais) no Mato Grosso do Sul e confinados em reservas superlotadas, onde a desnutrição infantil é endêmica. Ou aos Avá-Canoeiro, que, após décadas de deslocamentos forçados, lutam para reaver um fragmento mínimo de seu território original em Goiás. É uma compensação que não compensa.
A Constituição de 1988 é clara: as terras indígenas são “inalienáveis e indisponíveis”, e só permitem remoções em casos excepcionais, como epidemias ou guerras (Art. 231, §5º). Mas Mendes parece reviver o velho modus operandi do SPI (Serviço de Proteção aos Índios, antecessor da Funai), que no século XX removia comunidades inteiras sob a justificativa de “integracionismo” — política que deixou um rastro de mortes e etnocídio. É como se, em pleno 2025, ainda acreditássemos que indígenas não passam de peças de um tabuleiro a serem movidas conforme a conveniência do agronegócio ou da mineração. A mineração em Terras Indígenas é o Cavalo de Troia do “interesse público”.
Se há algo que a história recente ensinou, é que a mineração em terras indígenas nunca beneficia os povos originários. Basta olhar para Roraima, onde garimpeiros ilegais — muitos financiados por empresários com conexões políticas — devastaram a Terra Yanomami, levando à crise humanitária de 2023. Agora, a proposta de Mendes abre a porteira para que o governo declare atividades minerárias de “interesse público” em TIs, mesmo sem o consentimento das comunidades.
O argumento é sedutor para quem vê na Amazônia um “celeiro de recursos”. Mas esconde um detalhe sórdido: o “interesse público” frequentemente se confunde com o interesse de conglomerados empresariais nacionais e estrangeiros. Lembram-se do Projeto de Lei 191/2020, de autoria do governo Bolsonaro, que pretendia liberar mineração e hidrelétricas em TIs? A proposta de Mendes parece sua reencarnação, agora travestida de constitucionalidade. Enquanto isso, lideranças como Davi Kopenawa Yanomami advertem: O ouro está sujo com sangue Yanomami. O garimpo é uma ferida que não para de sangrar. E o governo quer passar mais sal nela?
E não se trata apenas de direitos indígenas. Um estudo elaborado pelo MapBiomas, em uma iniciativa multi-institucional que reúne universidades, ONGs e empresas de tecnologia identificou as áreas indígenas como as mais bem preservadas do Brasil. Permitir a mineração ali seria como entregar as chaves do cofre climático global a quem já provou não ter escrúpulos, isso em pleno ano de Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas em Belém, no Pará.
Outro ponto nevrálgico é a burocratização extrema do processo de demarcação. A proposta exige a participação de Estados, municípios e até de proprietários rurais em disputas — ou seja, coloca os réus para julgar suas próprias causas. Enquanto isso, o texto autoriza o uso da Polícia Militar em reintegrações de posse, o que, na prática, significa criminalizar as retomadas indígenas.
Enquanto representantes do agronegócio como a senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS) advogam pela “paz no campo” (entenda-se: ausência de manifestações), indígenas são vistos como ocupantes ilegítimos até mesmo nos territórios que constitucionalmente lhes pertencem. Um caso ilustrativo dessa hostilidade aconteceu quando tropas da PM sul-mato-grossense adentraram o Território Indígena de Dourados durante manifestação não-violenta dos moradores contra problemas de abastecimento hídrico, lançando explosivos nas residências da aldeia Jaguapiru e disparando contra pessoas completamente vulneráveis. Conforme levantamento do Cimi, quatro indígenas foram detidos, e aproximadamente 50 pessoas sofreram lesões, das quais somente 20 procuraram socorro hospitalar.
Não menos grave é a forma como o acordo foi costurado. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), principal entidade representativa, se retirou da comissão de conciliação do STF que discute o tema. Em seu lugar, entrou a Frente Parlamentar Mista Indígena — grupo que, na prática, representa mais os ruralistas do que os indígenas.
Por que um ministro do STF, cujo papel é zelar pela Constituição, está propondo um projeto de lei que a desfigura? Gilmar Mendes, aliás, já havia sido criticado por suas relações ambíguas com o poder político — e não é de hoje. Em reportagem da Folha de S.Paulo de 2002, o professor de direito Dalmo Dallari narrou um fato significativo: durante sua atuação como auxiliar do ministro Jobim na pasta da Justiça, no período FHC, Mendes envolveu-se em estratégias visando cancelar reconhecimentos territoriais dos povos originários. Naquele momento, ele contribuiu em discussões e sugestões sobre delimitações de áreas indígenas, particularmente quanto ao Decreto 22/91, que normatizava os procedimentos demarcatórios. Mendes ajudou a elaborar o Decreto 1.775/96, que acrescentou a necessidade do princípio do contraditório nas demarcações. Muitos interpretaram esta alteração como um esforço para questionar ou invalidar demarcações anteriores, principalmente aquelas posteriores à Carta Magna de 88.
Longe de ser uma novidade, a proposta atual de Mendes parece resgatar um modus operandi que ele já praticava nos bastidores do Executivo: desconstruir garantias indígenas sob o véu de tecnicismos jurídicos. Não é difícil enxergar, portanto, uma linha de continuidade entre o assessor que buscava fragilizar direitos indígenas nos gabinetes do Planalto e o ministro que hoje propõe condicionar o fim do marco temporal à legalização de mineração e remoções forçadas. Como escreveu Dallari na época: Não se pode inventar teses jurídicas a reboque de opções políticas. A advertência, feita há 22 anos, soa profética diante da ofensiva atual.
Se há algo a aprender com esse histórico, é que a atuação de Mendes não é um acaso, mas parte de um projeto que insiste em subordinar os direitos originários a interesses que a própria Constituição rejeita. Em se tratando de direitos indígenas é quase impossível achar meio termo. Quem já foi contra as demarcações no passado, dificilmente será seu guardião no futuro.
A condenação da ONU não é, portanto, um mero protocolo diplomático. É um alerta para que o Brasil não repita os erros de um passado colonialista, mas persistente, disfarçado agora em roupagens jurídicas. A proposta de Mendes, sob o véu de um “acordo”, esconde uma barganha perversa: em troca do fim do Marco Temporal (que já é inconstitucional!), exige-se a legalização de medidas que violam direitos originários e ameaçam o equilíbrio ecológico do país.
Há quem argumente que “algum acordo é necessário”. Mas como negociar quando a contrapartida é a própria dignidade humana? A Constituição de 1988 não foi feita para ser um documento flexível, moldado conforme os ventos do Congresso ou as conveniências de governos e ministros. Ela é clara: os direitos indígenas são “originários” (Art. 231), ou seja, anteriores ao próprio Estado. Não há “troca” que justifique violá-los.
Se há uma lição a ser aprendida com líderes como Raoni Metuktire ou Sônia Guajajara, é que a resistência indígena não é um capricho, mas uma luta pela sobrevivência física e cultural. Permitir que mineração, remoções e violência se normalizem é compactuar com um projeto de nação que enxerga suas matas e seus biomas como uma commodity, e seus povos como obstáculos a um “progresso” que se sabe muito bem a quem atende.
Ao STF, cabe lembrar seu papel de guardião da Constituição — e não de mediador de acordos espúrios. Ao Congresso, urge rejeitar propostas que transformam direitos fundamentais em moeda de troca. E à sociedade, resta pressionar para que o Brasil não seja lembrado como o país que, no século XXI, preferiu voltar ao século XIX à justiça e à democracia.
Como escreveu o líder indígena Ailton Krenak em Ideias para Adiar o Fim do Mundo: “Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer para escapar dessa. A gente resistiu expandindo a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais”. Que não sejamos nós a confirmar essa previsão.
A Constituição não é um documento negociável, e os povos indígenas não são moedas de troca em um jogo político. Como alertou a ONU, o preço do retrocesso será pago por todos nós — em florestas devastadas, culturas apagadas e um clima cada vez mais hostil. A vida exige coragem para dizer não.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.