No site da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), as terras dos povos Tabajara na Paraíba ainda se encontram no status “em estudo”. Mas após o Ministério Público Federal ajuizar no ano passado uma liminar para que a Justiça e a Funai concluam a demarcação, o processo andou. E segundo as lideranças, seria finalizado até agosto deste ano. A aprovação da tese do marco temporal, no entanto, pode interromper a conquista.
“O marco temporal é a catástrofe dos povos indígenas. Tanto daqueles que já lutavam antes da constituição, tanto daqueles que só reivindicaram depois, por todo um processo de silenciamento, por todo um processo de exclusão da sociedade. Ele vem trazer para cada um de nós a perda de direitos já garantidos”, pontua Natália Tabajara, liderança do Niaras Tabajara, grupo de mulheres da Aldeia Vitória.
Nesta quarta-feira (7), o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou a votação para definir se é constitucional ou inconstitucional a tese jurídica que considera o dia 5 de outubro de 1988 – data da promulgação da Constituição – como o marco temporal de demarcação de terras indígenas.
Caso a Suprema Corte julgue constitucional a tese defendida pelo agronegócio brasileiro, centenas de grupos indígenas que foram expulsos de forma violenta de seus territórios perderão o direito à terra, como é o caso do povo Tabajara.
“A nossa cultura foi arrancada de nós. A gente foi proibido de falar a nossa língua, a gente foi proibido de pintar o nosso rosto. A gente foi proibido de colocar o nosso cocar para que não acontecesse o extermínio total. E hoje eu tenho dois filhos, Cauã e Cauê, eles já aprenderam sobre a cultura dos povos indígenas. Nós estamos aqui revitalizando”, completa a indígena.
A luta pela terra
A luta dos Tabajara pela terra começou há séculos, em 1641. Foi quando a etnia recebeu dos portugueses a concessão das antigas sesmarias da Jacoca e Aratagui, no sul da Paraíba, zona de ocupação colonial mais antiga do estado. É o que consta nos estudos coordenados pelo antropólogo Fábio Mura, professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
Com o tempo, após serem expulsos de suas terras por usineiros e grandes latifundiários, as famílias do Povo Tabajara no estado se espalharam pelas periferias de João Pessoa ou em lotes da reforma agrária nos municípios de Conde, Pitimbu e Alhandra.
“Nossa maior luta hoje perante a sociedade brasileira é que a sociedade nos entenda como Tabajara, que foi um povo tão importante nos séculos passados. Nossos caciques, Piragibe, Arakem, Arapuã, Arcoverde, esses caciques que fundaram Nossa Senhora das Neves, que hoje é João Pessoa, e em troca recebemos três seis Marias, que é o Conde, a metade de Alhandra, e a metade de Pitimbu, e também a Ilha do Bispo. E de uma hora para outra esse povo desaparece”, pontua o Cacique Ednaldo Tabajara.
O início da retomada
Em 2006, sob liderança de Ednaldo, os indígenas iniciaram a retomada do território. É neste ano que o cacique, através de um tio, passa a conhecer o Mito da Profecia, herdado dos anciãos tabajara, que dizia que um jovem iria novamente reunir o seu povo para conquistar o seu território.
Na época, o Cacique Tabajara era um jovem de 19 anos que pretendia deixar a Paraíba e partir para a Europa, para ser jogador profissional de futebol.
“Deixei de lutar meu direito pessoal para lutar no direito coletivo e não me arrependo porque através disso nós conseguimos respeito no município, no estado, no Nordeste, no Brasil . O cacique Ednaldo fundou uma aldeia, duas aldeias e três aldeias. Ele está revitalizando a língua do povo Tabajara. Ele está revitalizando a cerâmica, a cultura do povo de Tabajara e garantindo o território pro seu povo viver”, relembra.
Antes da retomada, o cacique passou um longo período percorrendo as sedes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e da Funai e se reunindo com advogados, indigenistas e outras lideranças indígenas para tratar do reconhecimento oficial dos Tabajara como etnia.
Foi nesse contexto que o cacique liderou a entrada em uma área Tabajara onde seria construída uma fábrica de cimento pela empresa Elizabeth Cimentos. A concessão do território para o surgimento da primeira das três aldeias da etnia surge de um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) firmado entre a empresa e os indígenas.
“Nós Tabajara éramos muito presentes do século XV até o finalzinho do século XVI. Depois houve o silenciamento da gente. E depois vem o nosso ressurgimento. No nosso silenciamento, os coronéis, latifúndios que vêm de fora do Brasil, começam a tomar o território nosso. Hoje o marco temporal é muito isso. Como não vale mais nós ter língua cortada, pescoço cortado, cabeça cortada, óleo queimado e jogado em cima do nosso corpo, casa queimada, agora eles estão legalizando da forma que podem no Congresso Nacional. É uma covardia com toda a memória do ser humano dentro do Estado brasileiro”, explica o cacique.
“Nós vamos voltar para a favela”
Sonia Rodrigues da Silva estava grávida de 8 meses quando o Cacique Tabajara a convidou para participar do processo de retomada. Ela não pensou duas vezes: pegou os três filhos menores e acompanhou o grupo.
“Foi muito difícil pra gente esse período, muito sofrido. Eu não tinha conhecimento de nada do que era a luta indígena porque a gente não morava num território, não conhecia nada do que é ser indígena hoje. Então eu fui pra o que desse e viesse. E ali a gente ficou na mira dos pistoleiros, de muitos policiais, dormindo no relento”, recorda.
Hoje, 17 anos mais tarde, a indígena lidera o processo de reflorestamento de uma terra devastada. Ela teme, com a aprovação do marco temporal, ter que voltar a morar na cidade.
“É difícil pra nós, né? Ver esse marco temporal, essa PEC aí, né? Pra gente, nós vamos voltar pra favela novamente, vamos perder todos os nossos direitos, que a gente lutou, que a gente já conquistou. A perda é muito grande, né? Pegar os nossos filhos que já nasceram aqui dentro, criado aqui dentro da aldeia e levar pra favela. Então isso pra mim dói muito”, completa.
José Rodrigues da Silva, com 70 anos, também retornou à terra ancestral após o chamado do cacique Tabajara.
“Minha mãe falava que a gente tinha quatro léguas de terra. Essa terra aqui não é terra do Estado. Era a terra dos meus avôs. Então a gente foi expulso dessas terras. Espalharam todo mundo de um campo para outro”, explica o agricultor, que também auxilia no cultivo coletivo do milho, feijão e macaxeira.
“O marco temporal quer tirar o nosso direito. Porque é um direito que nós temos, nós não estamos tomando nada de ninguém. Nós estamos querendo o que é nosso. Nós lutamos por isso aqui”, completa.
Três aldeias
Em 14 de março de 2008, a Declaração de Autoidentificação foi entregue pelos Tabajara à Funai, com o histórico da ocupação no litoral sul da Paraíba. A ação antecedeu a criação do grupo de trabalho que produziria o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena (RCID), necessário para a regularização fundiária das terras indígenas Tabajara.
Hoje, além da Aldeia Vitória, onde vive o Cacique Ednaldo, os Tabajara possuem outras duas aldeias no Conde: a Gramame e a Nova Conquista.
“Nessas três aldeias nós conseguimos agrupar parte do nosso povo. Aqui na aldeia Vitória temos vinte e seis famílias. Mas muitos do nosso povo ainda estão nas periferias, porque a gente não consegue acessar políticas como habitação para poder trazer essas populações de volta para o nosso território. E a questão da demarcação ela vem como um alívio, né? Pra nós que vem lutando já há dezessete anos”, pontua Natália Tabajara.
“Hoje quando a gente volta os nossos olhos para essa catástrofe que está pra acontecer, se aprovada, a gente pede força aos nossos antepassados, aqueles que já habitaram essa terra, aqueles que morreram para que nós possamos estar aqui lutando”, completa
Expulsão de empreendimentos
A ação do Ministério Público Federal (MPF) que pede a conclusão imediata da demarcação também requer ao município de Conde (PB) que desautorize a instalação de empreendimentos imobiliários no território ancestral.
“Nós estamos aqui sofrendo muitas ameaças, de fazendeiros, usineiros, e, principalmente pela rede de empreendedorismo aqui do litoral sul, que é uma rede muito forte”, explica a liderança do coletivo de mulheres.
O MPF aponta ainda que, como consequência da expulsão dos tabajara de suas terras “muitas famílias indígenas desaldeadas têm visto seus filhos tornarem-se ‘favelados’ nas periferias de João Pessoa, desapossados de suas terras tradicionais”.
“Eu acho que a sociedade brasileira deve entender que o maior marco que nós devemos defender é o marco da vida. E a vida dos povos indígenas é o principal. Não é que nós somos melhor do que ninguém, é por todo um retrocesso que nós tivemos aqui. Então quando o Ministério Público judicializou o processo foi para que a Funai acelerasse, porque já estava nove anos parado, e hoje nós estamos brigando muito, porque o GT já foi a campo, já sabe o limite territorial, e agora vai ver se consegue publicar antes de qualquer desfecho no Congresso Nacional”, pontua o cacique Ednaldo.
“Sem a terra não tem educação diferenciada, não tem saúde diferenciada. A política social não chega. Então afeta direta e indiretamente nas comunidades. Porque dentro de um contexto que você não tem um território demarcado, nós perdemos toda uma política social de desenvolvimento, e de extermínio de novo com nosso povo”, finaliza.
Edição: Thalita Pires e Daniel Lamir