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Pesquisa mostra como Estado contribuiu para genocídio de povo indígena do PR

Colagem: Ana Polena

Em setembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucional a tese do Marco Temporal, defendida por ruralistas de todo o país. A proposta nega aos povos indígenas o direito a qualquer terra que não estivesse tradicionalmente ocupada em 5 de outubro de 1988, data em que a Constituição Federal foi promulgada.

O debate ganhou dimensão nacional a partir da Terra Ibirama-Laklãnõ, disputada pelo governo de Santa Catarina contra a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e indígenas do povo Xokleng. A rejeição da tese no STF foi uma vitória para as onze aldeias no território e um sinal positivo para outros 226 processos similares que aguardam decisão do Judiciário.

A quinhentos quilômetros dali, no estado vizinho, um povo originário da região conhecida por Serra dos Dourados, no noroeste do Paraná, teve um destino diferente — e o Estado brasileiro ocupa um papel central nessa história. Esta reportagem atravessa a trajetória da população Xetá, perseguida e dizimada em pouco mais de uma década.

João Pedro Minto Russo, mestre em Antropologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), é um dos pesquisadores dedicados a estudar a história trágica do último povo indígena a ser conhecido em terras paranaenses. A produção a seguir é baseada em seu trabalho de pesquisa, que recorta a atuação do extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI), a qual transformou a Serra dos Dourados.

Os Xetá e o Serviço de Proteção aos Índios

Os Xetá viviam em constante deslocamento, tirando sustento por meio da caça e da coleta. De dialeto tupi-guarani, estavam estimados, em 1955 — época do encontro com agentes estatais — entre 200 e 250 pessoas ao longo da margem do rio Ivaí. Sobreviventes, no entanto, relataram mais tarde uma população original muito maior, como mostra a pesquisa de João Pedro.

Até então, o consenso era de que apenas os Guarani e os Kaingang habitavam o Paraná, embora existissem indícios de um terceiro povo indígena na região. Durante muito tempo, os Xetá conseguiram se “esquivar” do avanço expansionista, alcançados por colonos em 1949. Os indígenas da Serra dos Dourados foram os últimos a serem encontrados no estado.

O contexto do período, no Brasil, era de diversificação das culturas agrícolas para além do café, principal fonte de renda da época (administrado, inclusive, pelo Ministério da Fazenda). Com o novo impulso expansionista e a instauração do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (Maic), começa-se a discutir a criação de um órgão dedicado à mobilização das terras para a nova campanha colonial. Em 1910, surge o Serviço de Proteção aos Índios (SPI). No papel, a intenção do movimento era “assegurar a soberania do território”, com foco nos sertões inexplorados do Brasil, como o Centro-Oeste (com exceção de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul), o Oeste do Paraná e, em especial, a região sul da Amazônia.

A execução prática do projeto foi ocupar esses lugares e converter os indígenas encontrados pelo caminho em mão de obra agrícola. Por mais absurdo que possa soar hoje, esses fins não estavam nas entrelinhas do SPI, como um entendimento informal — pelo contrário, constavam “nos autos do próprio órgão”, como missão oficial da entidade.

“Não é uma leitura retroativa. O objetivo [do SPI] era estender a administração do Estado para os rincões mais inexplorados do país, ‘pacificar’ os indígenas que ocupavam esses territórios, sedentarizá-los e transformá-los em pequenos produtores rurais”, destaca Russo.

Entre 1949 e 1967, o Serviço esteve organizado em oito divisões: as Inspetorias Regionais (IRs), que prestavam contas à diretoria nacional. A 7ª Inspetoria Regional (IR7) era a responsável pelos três estados da região Sul do país. São os arquivos dela que Minto Russo usa como fundamento para analisar o papel do órgão no extermínio dos Xetá. A partir de cada IR, irradiavam os Postos Indígenas (PIs), estações agrícolas que ocupavam a ponta da estrutura. Ali, os indígenas eram “recolhidos” e transformados em mão de obra agrícola para a manutenção e sustento da unidade.

Para Russo, a lógica genocida está diretamente ligada à ideia de estado-nação promovida pelo Ocidente, em que se persegue a homogeneidade cultural e étnica. “Todo o processo colonial do Brasil é um grande genocídio indígena. Cada caso, com cada povo, é uma manifestação local desse processo”, enfatiza.

Com a instauração do Código Civil de 1916, o SPI, no papel de braço do Estado, passa a contar com um bastião legal para cumprir seu dever: o índio torna-se uma categoria jurídica. Na visão da lei, ele era um indivíduo incapaz de cuidar de si próprio. A constituição da época julgava como obrigação do Estado “proteger e assimilar” essas populações para que elas pudessem se “emancipar”. Isso implicava o indígena como um indivíduo em estágio transitório, que deveria ser moldado até se transformar no “verdadeiro cidadão brasileiro”.

“O genocídio é o ataque à capacidade de um povo continuar se reproduzindo como uma população diferenciada. Os Xetá foram vítimas de um genocídio. Foram removidos forçadamente de suas terras, foram integrados forçadamente à sociedade entendida como brasileira em uma posição de subserviência”, descreve.

A Comissão Nacional da Verdade, de 2014, confirma que o Ministério Público do Paraná (MPPR) toma como base a Lei Brasileira de Genocídio, de 1956, para qualificar os Xetá como vítimas da prática. De acordo com o antropólogo, no entanto, um obstáculo muito claro impede a responsabilização jurídica pelo caso no noroeste paranaense: o crime de genocídio só pode ser imputado a indivíduos.

No Brasil, apenas dois casos chegaram a ser judicializados: o Massacre dos Ticuna, em 1988, e o Massacre de Haximu, em 1993. Embora o acontecido na Serra dos Dourados esteja dentro dos critérios estabelecidos pela lei para o crime de genocídio, não há “materialidade o suficiente para se acusar pessoas”, além da maior parte dos indivíduos diretamente envolvidos já ter morrido. “Em grande parte, genocídios não são esforços individuais”. Para efeito de comparação, o pesquisador cita o caso dos Avá-Guarani, expropriados de suas terras para a construção da usina hidrelétrica de Itaipu durante a Ditadura Militar.

Primeiros contatos

As diretrizes originais do SPI orientavam o órgão a “agremiar” e “pacificar” as populações indígenas para, só depois, se realizar a ocupação colonial do novo território. Entretanto, no momento em que os Xetá são “descobertos”, a Serra dos Dourados já estava sendo loteada por uma frente privada de colonização, o que não deixou grande abertura ao trabalho da IR7.

O primeiro encontro registrado com a população aconteceu através de agrimensores de companhias da região, em 1949. Apenas seis anos depois, em 1955, representantes do SPI estabelecem o contato oficial e permanente com os indígenas. Três crianças já haviam sido raptadas até os inspetores chegarem.

Descrito na obra de Antonio Carlos Souza Lima, o ‘cerco de paz’ é uma complexa estratégia de conquista, empregada pelo SPI durante toda a existência do órgão. A primeira etapa consiste em “agremiar” uma população dentro de um território muito menor do que o anteriormente ocupado por ela. Depois, vem a instalação dos ranchos: lugares de “atração” dos indígenas, onde eram deixados remédios, comida, roupas e ferramentas de trabalho.

Com o passar do tempo, esses instrumentos passaram a ocupar o lugar das tecnologias indígenas. “Era uma lógica de domesticação”, explica. Por consequência, a população tornava-se dependente dos postos de atração e do próprio SPI. Era esse o princípio fundamental do órgão.

“O caso Xetá, como genocídio, é um processo brutal de desobstrução geográfica. Os Xetá eram um empecilho para um plano de colonização”, explica Russo. Por conta do encontro tardio com os Xetá e do despreparo técnico da IR7, o núcleo se torna uma “grande empresa agrícola”. Sua responsabilidade passa ser a de administração do “patrimônio indígena” e contenção dos danos.

Moysés Lupion e o Norte novíssimo

Até 1910, quando surge o SPI, menos da metade do Paraná estava ocupada: o litoral, a faixa de Curitiba, os Campos Gerais e a região da tríplice fronteira, em Foz do Iguaçu. Ao longo da primeira metade do século 20, duas frentes coloniais buscaram expandir o domínio: o Norte Pioneiro (1910-1930), muito influenciado por agricultores de São Paulo, e o Norte Novo (1930-1940), que explorou a região de Londrina e Maringá.

Para ocupar a última rebarba de terra no Estado, surge o Norte Novíssimo (1945-1960), que avança justamente sobre a Serra dos Dourados. “Toda essa ocupação, do Norte Pioneiro até o Norte Novo, é guiada por uma expansão agrícola”, explica Minto Russo. Enquanto São Paulo precisa diversificar sua produção para atender às demandas da Segunda Guerra Mundial, o Paraná ascende como principal produtor de café no Brasil.

A expansão colonial do território paranaense acompanhou a Marcha para o Oeste, parte do programa instaurado pelo Estado Novo, durante a ditadura de Getúlio Vargas. Por aqui, ela tem início com a transformação de Foz do Iguaçu em território da União por conta da predominância estrangeira de ervateiros argentinos e paraguaios na região da tríplice fronteira.

Na época, quem governava o Paraná era Moysés Lupion, reeleito mais tarde. Para expandir a produção cafeeira até o último rincão paranaense, houve o avanço colonial sobre a Serra dos Dourados. Quando a primeira fase dessa nova ocupação começa a perder força, documentos da época já demonstravam o quão controverso era o uso da região para o plantio do café. Após uma década de pico na produção, o solo estava esgotado.

Acordo de 1949

Se, no Brasil como um todo, o SPI cumpria a função de braço do Estado nos confins do território brasileiro, o quadro regional era “marcado por procuradores locais acostumados a misturarem os projetos do Estado com seus próprios interesses”. Na Serra dos Dourados, o governo não só expropriou as terras do povo Xetá, mas contribuiu com a “liberdade total das companhias agrícolas em lidar com os indígenas como achassem melhor”.

O Acordo de 1949, também conhecido como Acordo Lupion, reduziu drasticamente as demarcações indígenas em todo o território paranaense, negando a presença de outros povos originários na região e transformando grande parte dessas áreas em terras devolutas. Enquanto algumas delas perderam mais de 90% do território, outras chegaram a ser extintas.

Como mostra a pesquisa da UFPR, na sequência, estimulando o avanço colonial para o noroeste, houve o loteamento e venda do território da Serra dos Dourados a particulares. Mais tarde, o governo estadual cruza os braços e deixa o SPI lidar com a situação por conta própria.

Tentativas de demarcação

Em 1957, enquanto a Serra dos Dourados é loteada, a Assembleia Legislativa do Paraná (Alep) aprova o Parque Estadual de Guaíra, em uma tentativa de reservar alguma área aos indígenas da região, mas o governo do estado não sanciona.

Mais tarde, o SPI volta a pressionar o governo e se reúne com o extinto Departamento de Geografia, Terras e Colonização. A ideia era desapropriar uma gleba em torno da Fazenda Santa Rosa – atual Douradina (PR) -, local onde aconteceu o primeiro contato do órgão com os Xetá, mas nada acontece.

No ano de 1961, surge “um último respiro”. Por decreto presidencial, é criado o Parque Estadual das Sete Quedas, uma reserva para a preservação ecológica e abrigo de povos indígenas do Paraná. O lugar jamais chegou perto de abrigar os Xetá e, décadas mais tarde, foi engolido pela inundação da barragem de Itaipu.

Enquanto a Serra dos Dourados era debulhada entre companhias agrícolas e proprietários menores, registros da IR7 mostram que a população rural da região deslocava grupos de indígenas em caminhões sem informação de destino. Os habitantes nativos do Noroeste paranaense ainda foram vítimas de outra prática cruel: o rapto sistemático de crianças para serem criadas entre famílias brancas em condição de serviçais. Arrancadas de seu seio familiar e do seu lugar de origem, elas “foram incorporadas de saída e à força em um processo agressivo de descaracterização étnica”, como atesta a pesquisa. A dissertação de João Pedro apresenta vários casos de remoção de xetás de suas terras.

Projeto Memória Indígena

O principal argumento que o governo, à época da ditadura, usou para expropriar o Parque Nacional de Sete Quedas em benefício da usina de Itaipu foi o de que os Xetá, a quem a reserva seria destinada, estavam extintos. “A narrativa da extinção se consolida em todas as frentes”, explica Russo. A imprensa veicula o fim de um povo do Noroeste paranaense e o governo estadual assina embaixo. Em 1961, o SPI retira os últimos xetás da Serra dos Dourados, os transfere para os Postos Indígenas espalhados pelo estado e “a questão deixa de ser uma questão”.

O cenário político do Brasil muda de rumo com a eclosão dos movimentos indígenas na década de 1970, em oposição ao Estatuto do Índio e à política expansionista promovida pelos militares. Os levantes buscavam o “reconhecimento do início de uma história indígena no país que não esteja vinculada só ao indigenismo, que não é a história do contato”.

É esse o contexto em que surge, no ano de 1985, o Projeto Memória Indígena (PMI), protagonizado pelas antropólogas Maria Lígia Moura Pires, da Universidade Federal do Paraná, e Lucia Helena Cunha, do Museu Paranaense. A iniciativa, que reuniu estudantes de Ciências Sociais e História da UFPR, durou cerca de quatro anos e foi encerrada em 1989.

Durante investigações sobre os Guarani e os Kaingang, as pesquisadoras “esbarraram” na narrativa de extinção dos Xetá. Conforme Russo, “elas perceberam que não era só isso” e reuniram os depoimentos de cinco sobreviventes do genocídio. De acordo com a dissertação do pesquisador, é a partir do reencontro entre os remanescentes do extermínio na Serra dos Dourados que os xetás “começam a recuperar sua memória e se reconstruir como povo”.

“Isso mostra o peso da remoção e da separação para populações assim, porque, se não há oportunidade para se compartilhar memórias […], isso se perde”, destaca. O movimento de reencontro entre os Xetá culmina, em 1998, na pesquisa da antropóloga Carmen Silva. O trabalho reuniu oito pessoas – incluindo as cinco presentes no PMI – entre doze indígenas sobreviventes de quem se tinha conhecimento na época, o que é explicado no próprio trabalho.

Herarekã Xetá e os dez anos de espera

A maioria dos Xetá vive, hoje, na Terra Indígena São Jerônimo da Serra, no Norte Pioneiro, e na aldeia urbana Kakané Porã, em Curitiba. As comunidades são divididas com populações Kaingang e Guarani.

João Pedro Russo destaca que, em 1998, quando a reunião entre os sobreviventes do genocídio acontece, eles já têm famílias formadas. “Essas famílias se entendem como Xetá. […] Hoje, são os filhos dos sobreviventes que encabeçam a luta”. Para o pesquisador, acusar a “extinção” desse povo parte de um “entendimento que não tem nada a ver com o que eles [xetás] pensam”.

Há quase dez anos, os sobreviventes do genocídio e seus descendentes aguardam pela homologação da Terra Indígena Herarekã Xetá. São 30 km² dentro do município de Ivaté, no Noroeste do estado, região nativa dos indígenas. O território foi delimitado pela Justiça em 2014. Desde então, não houve evolução do processo.

Uma arqueologia do genocídio: a investigação dos arquivos

A dissertação de João Pedro Minto Russo — “Uma arqueologia do genocídio: a atuação do Serviço de Proteção aos Índios entre os Xetá” — foi submetida ao Programa de Pós-Graduação (PPG) em Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) para a obtenção do título de mestre. Sob orientação da antropóloga e professora Edilene Coffaci de Lima, o trabalho foi aprovado em fevereiro deste ano.

De acordo com o próprio pesquisador, a realização do trabalho não acontece através de uma abordagem comum ao campo da Antropologia. A investigação de arquivos e registros históricos, como ele explica, é própria de historiadores, enquanto o estudo de povos indígenas é objeto comum da etnologia. Essa área investiga a identidade das populações, o que envolve costumes, cultura e comportamento, por exemplo — “o outro em sua outridade”.

Minto Russo descreve a dissertação como um “esboço de etnografia”, algo mais próximo dos dados do que do contato direto com as pessoas. Investigar o genocídio Xetá através dos documentos criou “um campo mais específico”. O foco na 7ª Inspetoria Regional recortou uma outra perspectiva para os estudos que abordam a trajetória desse povo.

O título da dissertação, como o antropólogo faz questão de ressaltar, não fala de ‘um’ caso de genocídio, mas ‘do’ genocídio indígena no Brasil. Esse processo, como explica, segue se reencenando cada vez em que o direito dos povos indígenas é questionado, “por diferentes lados, de diferentes formas”. “Eu insisti em falar em genocídio porque esse é o horizonte da relação entre essas populações e o Brasil”, justifica.

“Eles são sempre alvo. Seja os Xetá, aqui, seja os Xokleng, em Santa Catarina, seja os Yanomami, mais uma vez, trinta anos depois, passando pelo processo de genocídio por conta do garimpo. Em qualquer lugar, a história é a mesma, pelos mesmos motivos: o indígena ainda é um empecilho”.

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