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Justiça de PE pode dar posse de aldeia Xukuru para fazendeiro em terra indígena homologada há mais de 20 anos

Vista aérea da Aldeia Caípe, que está ameaçada de sofrer reintegração de posse em Pesqueira (PE) - Diego Xukuru/Ororubá Filmes

Na próxima semana, o Tribunal Regional Federal (TRF) da 5a região deve retomar o julgamento que pede a reintegração de posse da Aldeia Caípe, encravada no coração da Terra Indígena Xukuru de Ororubá, em Pesqueira, agreste pernambucano.

Reivindicada judicialmente por um fazendeiro desde 1992, a aldeia tem uma área de 300 hectares e integra um território já demarcado, homologado e registrado como bem da União de usufruto exclusivo do povo Xukuru desde 2001.

O pedido de reintegração de posse da aldeia Caípe é uma das mais antigas ações judiciais a tentar anular a homologação de um território indígena com base na tese do marco temporal.

“A angústia que nossas famílias sentem hoje é de ver seus direitos, de ver sua voz, não ser ouvida. É de ver o Estado brasileiro, o Poder Judiciário, dar um voto contrário à gente e não levar em consideração as mais de 80 famílias que dependem desse espaço e levar em consideração uma família que ocupou esse espaço através de derramamento de sangue, através de massacres, das pessoas que ocupavam esse espaço”, pontua Nén Xukuru, liderança da aldeia Caípe.

O que será julgado pelos desembargadores será uma ação ingressada em 2016 pela Funai em favor do povo Xukuru e que busca a nulidade de uma reintegração de posse determinada pelo TRF-5 em 2003, em favor do antigo posseiro.

Segundo Guilherme Araújo, liderança Xukuru e vice-prefeito de Pesqueira (PE), a decisão expedida pelo TRF-5 há 20 anos é ilegal, pois aconteceu dois anos após a demarcação do território.

“O processo de demarcação do território Xukuru passou por todas as etapas que são previstas hoje pela Constituição, pelo Decreto n. 1775 de 1996, que mudou a lógica de demarcação. Esse processo aconteceu respeitando todas as etapas, ou seja, era possível questionar, os indenizados serem parte, para poder discutir o valor dessa indenização”, pontua Guila.

“Após passar por isso tudo, o território Xukuru foi demarcado em processo de desintrusão, portanto, que reconhece toda essa área, todos esses 20.755 hectares como território indígena do povo Xukuru, que é terra da União, é federal, sobre o usufruto coletivo do povo Xukuru. Só por isso, discutir uma reintegração de posse nesse território já era para ser desconsiderado”, completa.

Aldeia Caípe está encravada no coração do Território Indígena Xukuru de Ororubá / Ororubá Filmes

O julgamento

Após três pedidos de vista, o julgamento vai retornar com 3 votos favoráveis ao antigo fazendeiro, e 2 votos favoráveis à Funai e ao povo Xukuru, restando apenas o voto de mais um desembargador. Caso haja empate, o presidente do tribunal, Edilson Pereira Nobre Júnior, desempata a votação.

“Todo mundo é pego de surpresa, inclusive o nosso cacique Marcos, que fica sabendo em cima da hora. E a gente parte para Recife com algumas lideranças, nosso pajé, para acompanhar esse julgamento. Nossa aldeia é pega de surpresa. Como assim, em 2023, a gente passar por uma situação tão absurda como essa?”, aponta Nén Xukuru.

Guila Xukuru coloca que o julgamento no TRF5 se trata de uma tese ainda mais grave do que a que foi derrubada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

“O Supremo Tribunal Federal derrubou a tese do marco temporal, acolheu a tese do indigenato, que reconhece o direito indígena como originário. Mas aqui, nessa discussão do caso da Aldeia Caípe, umas das teses que está em discussão é um outro marco temporal, mais ofensivo ainda do que o de 1988, que é um marco temporal baseado na data da Constituição de 1934. Isso está expresso em uma das argumentações para discutir essa reintegração de posse”, explica.

“350 cabeças da gado”

No seu voto em 9 de agosto de 2023, o desembargador federal Frederico Wildson da Silva Dantas defendeu a posse do antigo fazendeiro sobre a área onde hoje é a Aldeia Caípe com base na quantidade de bois que existiam no local.

“Se para uma pessoa se mudar para um apartamento, às vezes, leva quase um mês, imagine uma fazenda de 300 hectares com 350 cabeças de gado. Isso não foi do dia para a noite; pelo contrário, todos os elementos de prova indicam que essa ocupação já tem mais de um século”, pontuou.

O desembargador sustentou ainda em seu voto que a posse seria “um instrumento de paz social”.

“Se o Estado não protege a posse de um fazendeiro contra uma invasão ou um movimento social, ou uma comunidade indígena ou um vizinho, se ele não tem tutela do Estado, naturalmente a tendência é que ele recorra ao desforço imediato, e isso vai gerar um conflito. Então, o fundamento, digamos, jurídico, filosófico da tutela da posse é a paz. Quem viola a paz não tem tutela da posse”, colocou Dantas em seu voto.

Em seu voto, desembargador denomina a “demarcação” como um processo de “expropriação” no caso da Aldeia Caípe / Pedro Stropasola

Indenização por terra nua

Outro elemento utilizado pelos desembargadores para o voto contrário à Funai e ao povo Xukuru é o direito a indenização por terra nua, tese que foi defendida pelo ministro Alexandre de Moraes em seu voto no STF.

No específico da Aldeia Caípe, Guilherme Araújo explica que foi conferido o direito à indenização aos antigos posseiros no valor de 700 mil reais, mas eles pleiteiam a indenização por terra nua, que estaria na faixa de mais de 5 milhões de reais.

Não bastasse a homologação, o território Xukuru possui também uma decisão favorável da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que condenou o Estado brasileiro em 2018 a indenizar os indígenas pela lentidão no processo de demarcação.

A corte internacional determinou também a anulação de ações que atacam o direito territorial do povo Xukuru, como essa que está no TRF-5.

“Há também vários votos com uma dificuldade de compreender a sentença da corte Interamericana de Direitos Humanos. Ou de compreender, ou dificuldade inclusive de aceitar a vitória do povo Xukuru”, coloca o vice-prefeito de Pesqueira (PE).

Agricultura xukuru ameaçada

A Aldeia Caípe é a segunda aldeia da retomada liderada pelo cacique Xicão Xukuru, a partir de 1992. A agricultora Edjane Maria Neves Pereira tinha 8 anos à época.

“O cacique Xicão convidou minha família para participar da retomada e várias outras famílias também chegaram aqui. Meu pai, minha mãe, várias outras famílias com a gente pequeno, com as crianças pequenas. Nessa época, o território era coberto de capim. Então, o cacique resolveu distribuir pequenos espaços para cada família, tirando o capim e fazendo roçados, plantações de banana, milho, feijão e mandioca para que a gente tirasse o sustento”, relembra.

Hoje ela é uma das organizadoras da feira de base ecológica do povo Xukuru, que acontece semanalmente no território e é uma fonte de renda para as famílias.

“A gente tem esperança que isso não (a reintegração de posse) não aconteça, sabe? A gente pensa no nosso passado. A gente passou por várias necessidades, de todos os tipos. E hoje em dia a gente está estruturado, temos famílias”, explica a agricultora.

“A gente tem 45 famílias que hoje residem aqui dentro desse espaço e mais de 80 que dependem desse espaço porque trabalham com a agricultura. As nossas aldeias vizinhas, Brejinho e Caetano, têm suas famílias que também desempenham suas atividades de agricultura dentro desse espaço”, complementa a liderança Nén Xukuru.

Educação diferenciada

Ameaçada, a escola estadual indígena mãe Tamain é uma das 38 unidades de ensino dentro do território Xukuru / Pedro Stropasolas

Antes de ser assassinado, Xicão Xukuru, pai do atual cacique Marcos Xukuru, estimulou a criação de uma pedagogia própria dentro das 24 aldeias do território indígena no município de Pesqueira (PE).

A Escola Estadual Indígena Mãe Tamain é uma das 38 unidades de ensino criadas dentro do território, e foi inaugurada em 8 de fevereiro de 1997, no local onde funcionava a sede da antiga fazenda.

“Nós estamos passando a realidade do nosso povo, dos nossos mais velhos, através do toré, através de nossos costumes, nossas crenças, tudo em cima do que nosso povo nos repassa. Assim nossos estudantes aprendem a nossa cultura”, explica a professora Maria Jucinda Freire, que vive na Aldeia São José, mas leciona em Caípe.

Ao todo, são 33 crianças que correm o risco de perder o território sagrado. “Se eles saírem daqui, uns vão morar em outro lugar que seja área indígena e outros não. Então eles não vão ter mais esse conhecimento aqui nesta escola”, conta a professora.

“As crianças estão cientes. Até porque, quando é no dia do julgamento, a gente fica aqui juntos pedindo força ao nosso pai Tupã e ao nosso mestre Rei do Ororubá para que tudo dê certo”, completa.

“Cada um aqui, desde da liderança ou qualquer um desses jovens que estão aqui hoje, os mais velhos, estão aqui porque tem a missão dada pelos nossos ancestrais, de defender esse espaço, mesmo que seja com a nossa própria vida”, finaliza Nén Xukuru.

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