Quarenta e dois políticos e seus familiares de 1º grau são titulares de imóveis rurais com sobreposições em terras indígenas (TIs), totalizando 96 mil hectares — o equivalente à soma das áreas urbanas do Rio de Janeiro e Belo Horizonte. As informações são do dossiê “Os Invasores: parlamentares e seus financiadores possuem fazendas sobrepostas a terras indígenas“, elaborado pelo De Olho nos Ruralistas a partir do cruzamento das bases de dados fundiários do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), com informações do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
O documento foi lançado no dia 14 de junho e mostra os nomes de 18 líderes ruralistas financiados por empresários com sobreposições. O dossiê é resultado da investigação de mais de seis meses, envolvendo profissionais de diversos campos do conhecimento — Geografia, História, Agronomia, Direito e Jornalismo — e é apresentado num contexto de pressão contra os direitos dos povos do campo no Congresso, com a instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a aprovação do Projeto de Lei nº 490/2007, que institui o Marco Temporal para demarcação de terras indígenas, ambas na Câmara.
O relatório aponta ainda três congressistas que possuem fazendas em terras indígenas registradas em nome de suas empresas: o senador Jaime Bagattoli (PL-RO) e os deputados Dilceu Sperafico (PP-PR) e Newton Cardoso Júnior (MDB-MG). Os três são membros da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA).
“Se os deputados querem debater seriamente invasão de terras no Brasil precisam entender quem declara fazendas em territórios indígenas”, diz o diretor do De Olho nos Ruralistas, Alceu Luís Castilho. “A desigualdade de renda anda de mãos dadas com a desigualdade fundiária e a sociedade tem o direito de saber como as terras são apropriadas neste país”.
O relatório está disponível na íntegra aqui.
Fazendeiros com sobreposições financiaram ruralistas e Bolsonaro
A primeira parte do dossiê, divulgada no dia 19 de abril, apontou os nomes de empresas nacionais e estrangeiras entre as 1.692 sobreposições de fazendas em 213 terras indígenas, que totalizavam 1,18 milhão de hectares — tamanho igual ao do território do Líbano. Na segunda parte, a equipe do observatório rastreou quais destes sócios doaram para políticos nas campanhas de 2022; no caso de 54 dos 81 senadores, também de 2018.
Dezoito integrantes da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) receberam R$ 3,6 milhões em doações de campanha desses invasores. Entre eles estão o presidente da frente, Pedro Lupion (PP-PR), os vice-presidentes Arnaldo Jardim (Cidadania-SP) e Evair Vieira de Melo (PP-ES), a coordenadora política Tereza Cristina (PL-MS), ex-ministra da Agricultura, e outros oito diretores.
Outro destaque do relatório são os invasores que investiram em peso na candidatura derrotada de Jair Bolsonaro (PL) à reeleição. Juntos, 41 fazendeiros com sobreposições doaram R$ 1,2 milhão para sua campanha. Eles controlam uma área de 107.847,99 hectares, incidente em 23 áreas demarcadas pela Funai.
Senador tem fazenda grilada em área de indígenas isolados
Em novembro de 2007, os antigos proprietários de uma fazenda hoje pertencente ao senador Jaime Maximino Bagattoli (PL-RO) registraram uma área de 2.591,76 hectares dentro da Terra Indígena Omerê, em Corumbiara (RO), onde vivem o povo Akuntsu e os cinco remanescentes dos Kanoê, que se isolaram voluntariamente dos não-indígenas. A terra havia sido homologada em abril de 2006.
Jaime Bagattolli e seu irmão Orlando adquiriram a fazenda em 2011, por meio da penhora de uma dívida contraída pelos antigos proprietários, a família Junqueira Cleto, dona da empresa São José Jacuri Agropecuária. Em 1986, a família ingressou na Justiça para impedir que fosse declarada a restrição de uso da TI Rio Omerê, alegando que não havia presença indígena na área.
Com patrimônio declarado de mais de R$ 55 milhões, o senador por Rondônia é natural de José Boiteux (SC). Ele é dono do Grupo Bagattoli, com sede em Vilhena (RO), e reúne a Transportadora Giomila, a Rede Catarinense de postos de combustíveis e diversas fazendas voltadas para o plantio de soja e criação de gado.
Membro da FPA, o político foi eleito defendendo a exploração econômica de terras indígenas e a “regularização fundiária” das terras da Amazônia sem registro definitivo. Em 19 de abril, Dia dos Povos Indígenas, Bagattoli propôs dois projetos de lei: o primeiro pretende garantir ao fazendeiro o direito de “solicitar diretamente o uso de força policial para a retirada dos invasores, independentemente de ordem judicial”, o segundo altera o Código Penal para incluir na seção de crimes contra o patrimônio a ocupação de propriedades rurais.
Mesmo com um conflito de interesses tão escandaloso, caberá ao Senador da República Jaime Bagattoli avaliar o PL 490/2007, sobre o Marco Temporal — que passará pela apreciação do Senado, após ter sido aprovado em 30 de maio na Câmara. Caso aprovado e sancionado pelo presidente Lula, o projeto beneficiará diretamente os negócios do político.
Confira no mapa abaixo a sobreposição identificada em nome da Transportadora Giomila:
Deputado de Minas tem fazenda dentro da TI Kaxixó
O deputado Newton Cardoso Jr. (MDB-MG), um dos 27 vogais da FPA, é sócio junto com o pai, o ex-governador Newton Cardoso, o Newtão, da Companhia Siderúrgica Pitangui, empresa que reivindica uma série de fazendas no norte de Minas. A empresa aparece nos registros do Incra como titular das Fazendas Crisciúma e Capão, em Martinho Campos (MG). As duas encontram-se completamente sobrepostas ao território do povo indígena Kaxixó: a primeira com 460,20 hectares, a segunda com 373,84.
Historicamente, o deputado mineiro é ligado à defesa dos setores siderúrgico e de silvicultura, além de manter uma empresa de pecuária bovina. Com suas empresas devendo R$ 190,6 milhões à União, Newton Cardoso Jr. foi relator da Medida Provisória que alterou as regras do Programa de Recuperação Fiscal (Refis), em 2017, durante o governo Temer. O parlamentar também foi autor de um projeto, que propõe acabar com a obrigatoriedade do licenciamento ambiental prévio e dos estudos de impacto para áreas de reflorestamento.
No norte de Minas Gerais, próximo da divisa com a Bahia, ele e o pai são donos de fazendas de reflorestamento. A siderúrgica da família utiliza carvão vegetal proveniente do reflorestamento com eucalipto dessas fazendas.
Em 2017, mais uma vez legislando em causa própria, Newton Cardoso Júnior votou a favor da Medida Provisória 759, conhecida como “MP da Grilagem”, que dava brechas para a legalização de áreas públicas invadidas.
Dilceu Sperafico protagoniza conflitos com o Povo Guarani Kaiowá
O deputado Dilceu Sperafico (PP-PR) é proprietário, ao lado dos irmãos, da Fazenda Maracay, de 4.418 hectares, em Amambaí (MS). A área de plantio de soja ultrapassa a divisa da TI Iguatemipegua I, reivindicada pelo povo Guarani Kaiowá.
Avaliado em R$ 92,9 milhões, o imóvel está sob penhora, para quitar as dívidas acumuladas pela família. Em recuperação judicial, o Grupo Sperafico comercializa soja, milho, trigo e derivados, a partir de suas propriedades que se espalham pelo Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará e Tocantins. Em 2019, Dilceu devia R$ 129 milhões em tributos para a União, a empresa soma um passivo superior a R$ 1 bilhão.
Na mesma região do conflito, em 2007, um ônibus do grupo Sperafico deu apoio logístico a um ataque armado contra a comunidade indígena Kurussu Ambá. Esse atentado culminou no assassinato de uma indígena Guarani Kaiowá, de 73 anos. Segundo relato do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o corpo da vítima foi levado ao ônibus e deixado na beira da rodovia MS-289, em Coronel Sapucaia (MS).
No seu sétimo mandato na Câmara, Sperafico (PP-PR) é um dos principais defensores da Proposta de Emenda à Constituição (PEC), de 2000, que pretendia delegar ao Legislativo a atribuição de demarcar novos territórios indígenas e revogar homologações já realizadas. A proposta acabou sendo incorporada ao projeto de lei do Marco Temporal.
Família do Governador Ratinho Jr disputa terras com indígenas no Acre
A família do governador do Paraná Ratinho Júnior (PSD) é dona de um megalatifúndio no Acre, que incide nos limites da TI Kaxinawá da Praia do Carapanã, no município de Tarauacá. A família disputa área, regularizada desde 2001, incidindo em 13,82 hectares nas terras do povo Huni Kuin, também conhecido como Kaxinawá, além de disputar território com posseiros que permaneceram na região após a dissolução dos seringais.
O pai dele, Ratinho, comprou as glebas em 2002, após pagar cerca de R$ 330 mil à Companhia Paranaense de Colonização Agropecuária e Industrial do Acre (Paranacre), apontada como principal promotora de grilagem na região. A área está registrada em nome da Agropecuária RGM, uma sociedade entre o apresentador e os outros dois filhos.
Na região, Ratinho possui um histórico de conflitos contra as comunidades indígenas locais — em especial os Yawanawá —, que resistem contra o interesse do apresentador de estabelecer um grande projeto de exploração de madeira na Amazônia.
Além do capital político, a família acumulou uma fortuna ao longo dos anos, avaliada em R$ 530 milhões. A família de Ratinho possui uma emissora de rádio e televisão própria no Paraná, a Rede Massa e 19 fazendas espalhadas pelo país, onde investe na pecuária e no plantio de soja, milho e café.
Próximo das pautas ruralistas, Ratinho Jr. se reuniu em abril com membros da FPA para tratar de “invasões de terra” e ações de reintegração de posse.
Prefeitos e vices comandam latifúndios em terras indígenas
Três prefeitos e dois vice-prefeitos de municípios do Sudeste e Centro-Oeste integram a lista de fazendas sobrepostas a terras indígenas. Eles se somam a outras dezenas de chefes municipais do Executivo com esse tipo de incidência.
O pai do prefeito Bruno Margotto Marianelli (Republicanos), de Linhares (ES), Zilmar, possui uma fazenda sobreposta a 273,27 hectares da TI Comexatibá, na Bahia.
O filho do prefeito Carlos Alberto Capeletti (PSD), de Tapurah (MT), é um dos sócios da Melhoramentos Agropecuários Tapurah, dona da segunda maior sobreposição registrada no país: a Fazenda Uga-Uga avança em 47 mil hectares da TI Manoki e ocupa 18% da área demarcada.
O prefeito de Campos de Júlio (MT), Irineu Marcos Parmeggiani (Patri), possui a Fazenda Santo Reis, que incide nas bordas da TI Vale do Guaporé, do povo Nambikwara.
Dois vice-prefeitos com mandato em 2023 avançam sobre a TI Paresi: Claudio José Scariote (Podemos), de Sapezal (MT), e Zé Roberto Arcoverde (MDB), de Iguatemi (MS). Arcoverde foi prefeito de Iguatemi durante outros dois mandatos. É nesse município que sua irmã e sócia Ana Paula declara quase 2 mil hectares sobrepostos à TI Iguatemipeguá I, do povo Guarani Kaiowá.
Outros 23 ex-prefeitos e vice-prefeitos tem sobreposições em TIs apontadas no relatório.
Mato Grosso do Sul concentra sobreposições de políticos
Dono da maior desigualdade fundiária do país, com 92% das terras agrícolas em mãos privadas, o Mato Grosso do Sul lidera o ranking geral de sobreposições de fazendas em terras indígenas registradas pelo projeto “Os Invasores”: acumula 630 dos 1.692 casos analisados. E concentra o maior número de políticos envolvidos em disputas territoriais contra povos indígenas.
Das 42 áreas incidentes em TIs cujos titulares são políticos (ou seus parentes de 1º grau), 17 estão no estado. O caso da família Pedrossian é ilustrativo. Liderado pelo patriarca, o ex-governador Pedro Pedrossian, o clã está em sua terceira geração de políticos com o deputado estadual Pedrossian Neto (PSD-MS) eleito em 2022.
Pecuarista e criador de gado Nelore, Pedrossian era dono da Fazenda Petrópolis, com 2.250 hectares. Dados do Incra mostram que 1.172,81 hectares avançam sobre a TI Cachoeirinha. O patriarca morreu em 2017 e o imóvel passou para as mãos dos filhos, Pedro Paulo Pedrossian e Regina Maura Pedrossian. Os dois já figuravam em diversas ações de reintegração de posse contra as retomadas do povo Terena, impetradas entre 2008 e 2018, reivindicando a remoção de famílias que ocupavam partes da fazenda. Pedro Paulo é pai do deputado estadual Pedrossian Neto. Sócia na fazenda e na Agropecuária Petrópolis, Regina doou R$ 1 mil à campanha de Bolsonaro em 2022.
O dossiê “Os Invasores: parlamentares e seus financiadores possuem fazendas sobrepostas a terras indígenas” mostra a participação direta de outros políticos sul-mato-grossenses. O deputado Zé Teixeira (PSDB), o ex-secretário Ricardo Bacha (Cidadania) e a advogada Luana Ruiz — com trânsito livre na FPA — protagonizam conflitos territoriais com os povos Guarani Kaiowá e Terena.
Personagem central do filme “Vento na Fronteira”, Luana é herdeira dos proprietários da Fazenda Fronteira, que se sobrepõe à TI Ñande Ru Marangatu e foi palco dos assassinatos de Simião Vilhalva, em 2015, de Dorvalino da Rocha, em 2005, e de Marçal de Souza Tupã-i, em 1983.
Ela foi chamada em 2018 para integrar a equipe de transição do governo Bolsonaro, a pedido de Tereza Cristina. E assumiu o posto de secretária-adjunta de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, logo abaixo do ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR), Luiz Antonio Nabhan Garcia.
Junto ao marido, Luana Ruiz atua em ações de reintegração de posse e processos que contestam a demarcação de terras indígenas com base no marco temporal. Ao todo, De Olho nos Ruralistas identificou 17 proprietários de fazendas sobrepostas a TIs que foram representados judicialmente pela advogada. Dois deles doaram à campanha da advogada para a Câmara, que ficou com a suplência.
Observatório destaca casos em série de reportagens
As 1.692 sobreposições em terras indígenas reveladas pelo projeto “Os Invasores” comprovam que a violação dos direitos indígenas não é um mero subproduto do capitalismo agrário. Por trás dessa política de expansão desenfreada sobre os territórios tracionais estão alguns dos principais líderes do agronegócio.
Essa interface política não ocorre apenas no Legislativo. Eles ocupam cargos públicos nos três poderes, garantindo a manutenção do sistema político ruralista que vigora no Brasil há pelo menos dois séculos.
Os casos descritos na pesquisa estão sendo explorados também em uma série de vídeos e reportagens deste observatório. Com detalhes — muitos deles complementares ao dossiê — sobre as principais teias empresariais e políticas que conectam os “engravatados”, em cada setor econômico, legal ou ilegal.