Manaus (AM) – Alessandra Sampaio visitou o Vale do Javari de coração aberto. E voltou de lá com a certeza de que o legado de Dom Phillips, o britânico que sonhou em “salvar a Amazônia”, permanecerá vivo. Dois anos após os assassinatos do companheiro e do indigenista Bruno Pereira, a viúva voltou ao local que foi a última paragem do jornalista para criar o Instituto Dom Phillips. O projeto terá um viés educacional e girará em torno de uma plataforma digital de conteúdos que podem ajudar os povos indígenas e outras comunidades tradicionais, como ribeirinhos e quilombolas, a continuarem preservando a floresta.
“A gente está perto do aniversário de dois anos [a entrevista foi concedida na terça-feira, dia 4], então normalmente já é uma época emotiva”, conta Alessandra em entrevista exclusiva à Amazônia Real. “E eu fiquei bastante emocionada, especialmente com a recepção das pessoas que trabalham na Univaja, os indígenas, todos me tratam com muito carinho, muito cuidado e saber que o Dom esteve ali trouxe muita emoção pra mim.”
A visita no município de Atalaia do Norte, no Amazonas, ocorreu no dia 2 de junho. Foi a segunda vez que ela pisou na região, onde Bruno e Dom morreram vítimas de uma emboscada de pescadores ilegais. Mas ao contrário da primeira ida, em 2022, quando foi acompanhada de uma comitiva do governo, desta vez ela pode parar e conversar com as pessoas. E foi bom para ela compreender a importância do Instituto Dom Phillips.
“A gente entende que há muito conhecimento nesses territórios, inclusive seguindo um pouco os passos do Dom, que estava fazendo o livro dele How to Save the Amazon: Ask the People Who Know [Como salvar a Amazônia: pergunte a quem sabe, em tradução livre] que entendia que as pessoas têm muita sabedoria, muito conhecimento dentro dos territórios e que é desconhecido esse conteúdo tão importante sobre a Amazônia”, ressalta.
A ideia também é reverberar o conhecimento para o mundo, por meio da plataforma digital, mas também se fazer presente no dia a dia, dentro dos territórios. “A gente entende que é importante estar ali, nesse contato corpo a corpo, assim como Dom fazia para a pesquisa do livro dele, nas matérias que ele fazia, ele estava sempre em contato com o território, com os povos do território e é isso que a gente quer fazer”, explica.
Encantamento
A voz chega a ficar embargada, quando a viúva começa a falar do marido. “O maior legado do Dom é inspirar as pessoas para a importância da Amazônia e dos seus povos que são os responsáveis por manter a floresta de pé”, diz. E, além disso, “mostrar que a Amazônia é muito além de uma floresta, uma biodiversidade muito diversa, complexa, com povos incríveis que vivem nela. É um universo único que é muito necessário a gente proteger”.
Sempre que Dom Phillips voltava para casa, ele e Alessandra passavam horas falando sobre o “encantamento” dos amazônidas. “É uma palavra muito bonita, muito forte, representa bastante o Dom, que é esse encantamento de chegar na floresta e de ver aquela beleza toda, com povos de uma sabedoria milenar e que tudo isso é tão importante ser protegido, os modos de vida das pessoas”, descreve.
A viúva revelou que a ideia de criar o Instituto Dom Phillips surgiu porque ela não queria ficar parada, tomada por um sentimento de “inação e frustração”. Ela precisava seguir em frente, mas já sabendo ser responsável pelo legado do marido. “Tanto o Dom quanto o Bruno viraram um símbolo da questão da proteção da floresta, dos povos da floresta.”
Ecossistema da ilegalidade
Em Atalaia do Norte, o coordenador da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) Bushe Matis afirmou, em conversa por telefone com a Amazônia Real, que “nada mudou” desde as mortes de Bruno Pereira e Dom Phillips e que os desafios continuam sendo imensos. Invasão de caçadores, pescadores ilegais, madeireiros e garimpeiros associados ao narcotráfico, além da expansão de áreas de pastagens e estradas no sul do Vale do Javari, já fronteira com Acre, continuam sendo a tônica da ocupação da região, agora com um agravante.
“Outro desafio são as missões religiosas fundamentalistas que querem fazer contato com os povos isolados nessa região e querem entrar na força para evangelizar nossa etnia”, denuncia Bushe. O Vale do Javari possui a maior concentração de povos indígenas isolados do mundo, que estão espalhados por uma extensão territorial de mais de oito milhões de hectares.
O coordenador da Univaja fala ainda sobre o projeto de monitoração territorial que, segundo ele, ainda está engatinhando, e que depende da sustentabilidade financeira. Até agora, apenas pequenos projetos conseguem se manter. O grande desafio para as ações no Javari são os custos com logística. “Sejam [ações] de monitoramento, ação de saúde, ação de educação, para chegar numa comunidade tipo Maronal, Vida Nova, Massapê e comunidades distantes do município, que leva 17 dias, 14, 15 dias, e para chegar até lá são mais de 2 mil litros de gasolina, 3 mil de gasolina, que a gente não consegue porque combustível aqui na nossa região é muito caro, um litro de gasolina custa mais de oito reais”, lamenta.
Mas os indígenas não estão parados. Eles decidiram montar equipes regionais para realizar o monitoramento de suas terras. “As equipes irão atuar diretamente nas calhas de cada rio fazendo monitoramento via fluvial. No momento, montamos apenas um. Estamos esperando outros barcos para montar o restante”, diz Bushe.
Na visita que fez ao Vale do Javari, Alessandra viu in loco que a situação continua tão grave e tensa como quando seu marido foi brutalmente assassinado. Mas as ações dos indígenas da Univaja fazem diferença. “É muito importante o que eles trazem como trabalho, que é justamente o não-enfrentamento nas situações que eles têm ali de possíveis conflitos. Eles têm uma posição de não-enfrentamento, mas de registro para levar essas informações para os órgãos competentes”, diz Alessandra, referindo-se à Polícia Federal (PF), à Funai e ao Ministério Público. Para a viúva, esses órgãos têm cumprido seu papel, mas é preciso fortalecer o trabalho das entidades da sociedade civil, como a própria Univaja. “Existe um trabalho de estruturação que foi desmontado no governo anterior e tem muito trabalho a ser feito pela frente.”
O julgamento
Há um processo em curso sobre os assassinos de Dom Phillips e Bruno Pereira. “Eu tenho uma orientação dos meus advogados que dizem que o processo está indo muito bem e que para eu ficar tranquila porque é o tempo normal de um processo. Tem uma investigação robusta e a gente acredita na Justiça e a gente segue aí esperando o momento onde a gente vai acompanhar de perto esse julgamento”, conta Alessandra.
O advogado da família de Dom Phillips, Rafael Fagundes, disse para a reportagem que o processo continua aguardando o julgamento do recurso dos acusados “É o recurso contra a decisão que enviou eles para júri popular. No recurso eles querem ser absolvidos”, informa.
No dia 18 de janeiro deste ano a PF prendeu em Tabatinga (AM) o quinto – e até momento, o último – acusado de participação no duplo homicídio e ocultação dos cadáveres do indigenista brasileiro e do jornalista britânico. Jânio Souza é apontado como a última pessoa a conversar com Bruno e Dom.
A PF aponta Jânio como informante do mandante dos homicídios, Rubem Dário da Silva Villar, o “Colômbia”, já preso em Manaus por crimes de falsificação de documentos além de ser apontado como chefe de uma organização criminosa transnacional armada, em outro inquérito que apurou pesca ilegal e contrabando.
Segundo as investigações, o crime foi premeditado. Souza e “Colômbia” foram indiciados pelos crimes em 31 de maio de 2023. Uma quebra de sigilo telefônico revelou que entre 1º de junho de 2021 e 6 de junho de 2022 – um dia após o assassinato de Bruno e Dom -, que “Colômbia” e Jânio trocaram 419 ligações telefônicas. A conversa está em sigilo. Nos depoimentos anteriores, Jânio havia dito em mais de uma ocasião que conhecia “Colômbia” apenas de vista.
Os outros réus presos são os também pescadores Oseney da Costa Oliveira, o ‘dos Santos’ (irmão de Pelado), e Jefferson da Silva Lima, o ‘Pelado da Dinha’ – este também confessou sua participação nos crimes. Oliveira nega a autoria nos homicídios, mas testemunhas revelaram o envolvimento dele no caso.
Segundo a PF, Bruno Pereira, servidor licenciado da Fundação Nacional do Índio e ex-coordenador da Coordenação de Indígenas Isolados e de Recente Contato, passou a sofrer ameaças de morte e era monitorado pela organização criminosa comandada por “Colômbia”. O indgenista combatia a pesca ilegal na terra indígena. Já o jornalista britânico Dom Phillips, colaborador do jornal inglês The Guardian, estava entrevistando os indígenas para produzir um livro. Os dois foram mortos a tiros, depois tiveram seus corpos esquartejados, queimados e enterrados no Vale do Javari. O crime aconteceu em 5 de junho de 2022, uma data emblemática, já que se trata do Dia Mundial do Meio Ambiente.
“Esse crime foi tão cruel e muito ruim para todos nós. Um homem não deveria fazer isso a outra pessoa. Hoje, todos nós estamos lembrando de quem lutou pela Amazônia, para que cada dia possamos pensar mais em respeito ao meio ambiente”, finalizou Bushe.
Projeto Bruno e Dom
Há um ano, a Amazônia Real participou do consórcio internacional coordenado pela Forbidden Stories, que encabeçou o Projeto Bruno e Dom, que foi formado por mais de 50 jornalistas de 16 organizações de mídia. A agência foi o único veículo da região Norte do Brasil.
Para o projeto, a agência publicou três reportagens: “A Fome pelo ouro do rio Madeira”, mostrando a atuação de garimpeiros ilegais; “Os Guerreiros do Médio Javari”, sobre a atuação do grupo Guerreiros da Floresta, formado por indígenas Kanamari, que atuam na vigilância do próprio território no Vale do Javari; e por fim a reportagem “Uma BR-319 no meio do caminho”, mostrando os bastidores das tentativas de asfaltamento da BR-319, que liga Manaus a Porto Velho.
A ideia dos jornalistas era manter o legado de um colega vivo. E é também a motivação de Alessandra, que vê esperanças de que o Instituto Dom Phillips possa fazer a diferença. Estilista com foco em sustentabilidade e empreendedora, ela lembra que a dor pela perda do marido agora precisa ser transformada em um movimento educacional. “Traz muita esperança, porque tenho a esperança de que a gente possa contribuir, dando visibilidade para essa região, que acaba se traduzindo também em proteção de alguma forma”, pontua Alessandra. Para ela, se as pessoas realmente puderem se sentir tocadas a fazer parte desse movimento de proteção da Amazônia, tragédias podem ser evitadas. “E eu acho que todo mundo pode fazer alguma coisa como cidadão.”