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Família de Arthur Lira destruiu mata sagrada dos Kariri-Xocó em Alagoas

Bois da família Pereira na Fazenda São Raimundo, em área sobreposta à TI Kariri-Xocó - Ilana Costa/De Olho nos Ruralista

“Eu penso que os índios não precisam de mais terras, eles precisam de estrutura e uma vida decente. Uma condição de poder explorar o que ele já tem. 0,02% da população brasileira, que são os povos originários indígenas reconhecidos, ocupam 14% do território nacional, sem direito a fazer nada. Se eles tivessem como explorar crédito de carbono, mineração, plantio de soja, qualquer coisa, nas áreas que o Código Florestal permite, eles teriam outra realidade.”

Foi dessa forma colonialista que Arthur Lira (PP-AL) resumiu sua visão sobre os povos indígenas. A declaração ocorreu durante sua participação no programa Roda Viva, da TV Cultura, em junho de 2023. Menos de um mês depois, em 24 de julho, o presidente da Câmara submetia a votação o projeto de lei que institui o Marco Temporal.

O fato ignorado à época é que Arthur César Pereira de Lira possui motivos pessoais para se opor aos direitos indígenas.

Em São Brás (AL), nas margens do Rio São Francisco, os herdeiros do pecuarista Adelmo Pereira são donos de 2.014,69 hectares sobrepostos à área de reestudo da Terra Indígena Kariri-Xocó, homologada por Lula em abril de 2023. Falecido em 2016, Adelmo era primo de Ivanete Pereira de Lira, a mãe de Arthur.

Pouco antes de morrer, o fazendeiro foi multado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) por destruir 259,60 hectares de uma mata considerada sagrada pelos Kariri-Xocó.

Fundada para gerir o patrimônio deixado pelo pecuarista após sua morte, a empresa ADM Administradora de Bens e Direitos é titular de seis imóveis sobrepostos à TI Kariri-Xocó. São as Fazendas Baixa Grande, Boa Esperança, Brejão, São Raimundo e Unajara, além de parte da Fazenda Santa Terezinha. A empresa tem como sócios Margarida Barroso Pereira, viúva de Adelmo, e os filhos Teófilo, Noêmia, Ana Margarida e Denise. Teófilo Pereira (PP) é prefeito de Craíbas (AL) e um importante aliado de Lira em Alagoas.

Os dados fazem parte do dossiê “Arthur, o Fazendeiro“, que revela com exclusividade a dimensão do império agropecuário construído pelos clãs Lira e Pereira — sobrenomes paterno e materno do deputado. Publicado pelo De Olho nos Ruralistas nesta segunda-feira (13) e divulgado em parceria com o ICL Notícias, o estudo identifica um uso contínuo da máquina pública para beneficiar os negócios do Grupo Pereira — incluindo a venda de carne oriunda da terra indígena para prefeituras dominadas pela família.

Dossiê revela a dimensão do império agropecuário dos clãs Lira e Pereira.

A TI Kariri-Xocó é uma das áreas ameaçadas pelo Marco Temporal. Motivo: na data em que foi promulgada a Constituição, em 05 de outubro de 1988, boa parte do terreno reivindicado pelos indígenas já havia sido tomada por fazendas. Julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e vetada por Lula, a tese considera ilegítimas as demarcações de terras ocupadas por indígenas após esse prazo — mesmo que eles tenham sido obrigados a se deslocar.

Caberá a Arthur Lira colocar (ou não) em votação a derrubada dos vetos presidenciais.

Dossiê identificou seis imóveis sobrepostos à Terra Indígena Kariri-Xocó. (Cartografia: Eduardo Carlini/De Olho nos Ruralistas)

Adelmo Pereira usou correntão para destruir vegetação nativa

Ao lado do irmão João José, Adelmo Pereira tentou suspender o processo demarcatório da TI Kariri-Xocó em duas oportunidades. Em 2002 e 2007, os dois figuravam entre os autores de ações judiciais contra a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Os fazendeiros argumentavam que a etnia jamais habitou a região e que as demandas por demarcação seriam obra de “infiltrados”, interessados na revenda de lotes para fazendeiros não-indígenas. Adelmo alegava que a demora no processo de demarcação ensejaria a anulação dos procedimentos administrativos realizados até aquele ponto.

Cacique Kariri-Xocó mostra área desmatada pelo clã Pereira dentro da terra indígena. (Foto: Ilana Costa/De Olho nos Ruralistas)

Para a Funai, os ocupantes não-indígenas eram os principais responsáveis pela demora, uma vez que impediam a realização dos trabalhos das equipes antropológicas. Foram diversos os pedidos liminares da Funai para que a fundação dispusesse de apoio policial, devido às dificuldades impostas pelos fazendeiros.

Segundo o cacique Nadinho, um dos líderes do território, Adelmo sabia da demarcação quando adquiriu as terras:

— Quando eles [os Pereira] compraram, ele sabia, porque muita gente disse para que ele não comprasse essa terra. O Adelmo disse: “Eu vou pegar essa briga com os índios”. Foi isso que nós soubemos.

Além de atuarem judicialmente a fim de postergar a homologação, os familiares de Arthur Lira são responsáveis por crimes ambientais de grandes proporções nos limites demarcados. Em 2011, Adelmo Pereira e outros três fazendeiros foram alvo de uma ação civil pública do Ministério Público Federal (MPF). Segundo a denúncia, eles desmataram 158,5 hectares de uma área de preservação permanente (APP), na divisa entre a Fazenda Unajara e a TI Kariri-Xocó. Importante zona de transição ecológica entre a Caatinga e a Mata Atlântica, o local foi destruído com o uso de “correntão”, que consiste na supressão em larga escala de vegetação por meio de uma corrente presa entre dois tratores.

Cinco anos depois, em março de 2016, fiscais do Ibama atenderam uma nova denúncia contra Adelmo, desta vez na Fazenda Boa Esperança. Ao constatar o desmatamento de 259,60 hectares de vegetação nativa, eles embargaram a área e lavram duas autuações contra o fazendeiro, somando R$ 769,5 mil. Adelmo faleceu em outubro daquele ano, sem pagar as multas. O processo ainda corre no Ibama.

Ibama aplicou R$ 769,5 mil em multas contra Adelmo Pereira. (Imagem: MMA)

Kariri-Xocó querem reflorestar áreas desmatadas por pecuaristas

A região destruída pelos Pereira é considerada sagrada pelos Kariri-Xocó. Ali fica o Ouricuri, nome dado tanto ao espaço físico quanto aos ritos religiosos praticados pelos povos do tronco linguístico Macro-Jê da bacia do Rio São Francisco, na região entre Alagoas e Pernambuco. O local é quase uma réplica da aldeia principal. Aos fins de semana, parte da comunidade sobe para o Ouricuri para realizar o ritual, que envolve o canto do toré e o uso de plantas medicinais. O acesso ao conhecimento ancestral é restrito aos iniciados. Em datas específicas, parentes de outras etnias são convidados — e também recebem os Kariri-Xocó em seus próprios Ouricuris.

Pajé Julio Suíra defende um grande projeto de reflorestamento da área homologada. (Foto: Ilana Costa/De Olho nos Ruralistas)

O cacique Nadinho conduziu nossa equipe por uma trilha até a área desmatada por Adelmo em 2016. Menos de 300 metros separam o Ouricuri da cerca que separa a terra indígena da fazenda dos Pereira. O que antes era mata hoje se assemelha a um pasto degradado. Árvores isoladas pululam entre a grama alta. A floresta se recupera aos poucos. Ao fundo, é possível vislumbrar edificações do imóvel dos fazendeiros.

Aos 86 anos, o pajé Julio Queiróz Suíra tem esperança de que, com a desintrusão, os Kariri-Xocó possam regenerar as matas destruídas pelos fazendeiros ao longo de décadas:

— A área de mato que a gente tem é muito pouca. A roça do índio, para a manutenção dele, qualquer tantozinho dá. Nós queremos nossa área é coberta de mato. Porque o mato é o que garante a terra e a sobrevivência de quem vive dentro dela.

Filho do líder espiritual, o cacique Cícero Suíra se emociona ao falar do território:

— Eu tenho fé em Deus que essa terra saindo, meu pai, o pajé estará aqui nessa cadeirinha para ver e dizer assim: “Quando Deus me chamar eu sei que meus filhos e minha comunidade estarão em paz, porque vão ter do que sobreviver”.

Assinado por Lula em 28 de abril de 2023, o decreto da homologação, sozinho, não garante aos Kariri-Xocó o usufruto do território. Ao todo, existem mais de uma centena de ocupantes não indígenas na área que deverá ser incorporada à TI — de marinas de luxo à beira do São Francisco a pequenos posseiros, que aguardam a ordem de remoção e o pagamento de indenização pelas benfeitorias realizadas. A maior fatia é controlada pelos Pereira, que concentram mais de 40% da área sujeita à desintrusão.

Área desmatada por Adelmo Pereira em 2016, próximo da mata sagrada do Ouricuri. (Foto: Ilana Costa/De Olho nos Ruralistas)

Gado criado na TI é vendido ao frigorífico da família

Trecho da Guia de Trânsito Animal da Fazenda Flexeiras mostra compra de centenas de cabeças de gado de imóvel localizado na TI Kariri-Xocó. (Imagem: TJAL)

Do casamento com Margarida Barroso Pereira, Adelmo teve cinco filhos: Ana Margarida, Denise, Maurício, Noêmia e o mais velho, Teófilo. Este foi batizado em homenagem ao avô, prefeito de Junqueiro entre 1956 e 1961. Com a morte do pai, Teófilo José Pereira tornou-se o principal administrador das fazendas. Sem abdicar das intenções políticas: após três tentativas de se eleger prefeito em Craíbas (AL), ele venceu as eleições de 2020 pelo PP, apoiado pelo primo e colega de partido Arthur Lira.

Membros da sexta geração do clã Pereira, os filhos de Noêmia também se destacam na administração das fazendas. São eles: Nicolas Agostinho Pereira Santos, dono do frigorífico Dom Grill, e José Nilson dos Santos Filho, atual secretário de Finanças de Teotônio Vilela. A própria mãe ocupa a Secretaria de Educação. O município é governado pelo primo Peu Pereira.

A empresa Dom Grill foi fundada pelos irmãos em 2017, com sede em Campo Alegre e filiais em Maceió e Arapiraca. Entre as Guias de Trânsito Animal (GTA) anexadas ao processo de espólio de Adelmo Pereira, há pelo menos um caso que demonstra que o frigorífico vem comprando gado das fazendas que impedem a demarcação da TI Kariri-Xocó.

Segundo os documentos, aos quais a equipe teve acesso, 472 bovinos saíram da Fazenda Brejão, entre 2021 e 2022, com destino a outro imóvel da família, no município de Pindoba (AL). Conforme demonstrado pelo mapa de sobreposições, a Fazenda Brejão está completamente inserida nos limites da terra indígena.

Sem uma unidade de abate própria, o frigorífico de Nicolas destina a maioria dos animais para o Matadouro Municipal de Campo Alegre, construído em 2013, durante o primeiro mandato da prefeita Pauline Pereira, prima de Teófilo e Noêmia e uma das familiares mais próximas a Arthur Lira e seu pai, Benedito de Lira. O papel de Pauline será detalhado na próxima reportagem, sobre os contratos firmados entre o frigorífico Dom Grill e prefeituras controladas pelo clã.

A reportagem tentou contato com todas as empresas e indivíduos citados. Não houve retorno até o fechamento do dossiê.

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