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Currículo escolar indígena: desafios e oportunidades

A educação escolar indígena precisa ser diferenciada, intercultural, bilíngue, comunitária e sustentável. Foto Joabe Guaranha/NOVA ESCOLA

Segundo a Constituição Federal, o Ensino Fundamental deve ser ministrado em Língua Portuguesa, mas assegura-se às comunidades indígenas a utilização de línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. O Censo Escolar de 2022 indica que, das 178,3 mil escolas de ensino básico, 3.541 (1,9%) estão localizadas em terra indígena e ministram conteúdos específicos e diferenciados, de acordo com aspectos etnoculturais; enquanto 3.597 (2%) oferecem educação indígena, por meio das redes de ensino.

Edson Kayapó, historiador e professor doutor em Educação no Instituto Federal da Bahia (IFBA) e de Ensino em Relações Étnico-Raciais da Universidade Federal da Bahia (UFBA), explica que a educação indígena é aquela recebida em cada comunidade, “tem a ver com as tradições, com os rituais, com a oralidade e com uma formação para o pertencimento, para a vida”, diz.

Por outro lado, a educação escolar indígena não é necessariamente originária e segue o currículo da escola, da secretaria de educação, ou seja, se orienta pelo Ministério da Educação.

“Muitas vezes, ela [educação escolar indígena] chega de maneira abrupta nos territórios. Por isso, nas últimas décadas, temos nos apropriado desses espaços e buscado um diálogo que una os conhecimentos científicos e tradicionais”, afirma Edson Kayapó.

Ele explica que a educação escolar indígena precisa ser diferenciada, intercultural, bilíngue, comunitária e sustentável, “algo que as lideranças [indígenas] entenderam e tomaram a linha de frente para a construção dessa escola, sendo os professores peças fundamentais na realização do projeto educacional”, completa.

Nesse sentido, há a necessidade de uma escola que não reproduza ações pedagógicas colonizadoras, favorecendo um currículo decolonial “[A instituição] precisa dialogar com as nossas tradições, com os nossos saberes e com as nossas próprias formas de organização. Nós queremos e estamos construindo escolas que respeitem as nossas diversidades linguísticas e os saberes tradicionais”, explica Kayapó.

O historiador reforça que o Estado brasileiro precisa estar atento para que essa “forma de agir educacionalmente” seja respeitada: “Por muito tempo, a escola foi um ambiente que negou as tradições e as culturas das comunidades. Então, a partir da Constituição Brasileira de 1988, nós temos construído esse local que respeita formas próprias de organização”.

Porém, foi em 1999 que o Conselho Nacional de Educação, interpretando dispositivos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e da Constituição Federal, instituiu, de fato, a criação da categoria escola indígena nos sistemas de ensino do país.

Assim, definiu elementos básicos para a organização, estrutura e funcionamento destas escolas, como a localização em terras habitadas por comunidades indígenas e atendimento exclusivo a elas por meio do ensino ministrado em suas línguas maternas, além de uma organização escolar própria. Ou seja, que considere estruturas sociais, práticas socioculturais e religiosas, atividades econômicas, formas de produção de conhecimento, processos próprios e métodos de ensino-aprendizagem, e uso de materiais didático-pedagógicos produzidos de acordo com o contexto sociocultural de cada povo indígena.

Currículo, BNCC e a educação escolar indígena

Para que as ações curriculares sejam bem-sucedidas, é preciso que haja um Projeto Político Pedagógico (PPP) adaptado à realidade da aldeia e do povo que mora nela. “Devem constar as especificidades dessa educação [se é bilíngue ou até multilíngue], um calendário específico e diferenciado, assim como iniciativas de respeito e valorização dos conhecimentos tradicionais que aquele povo tem”, explica Raimundo Kambeba, pedagogo com foco em interculturalidade indígena e diretor na Escola Indígena Kanata T-Ykua, localizada na aldeia do povo Kambeba, às margens do Rio Negro, em Manaus (AM).

Conforme prevêem as diretrizes do Conselho Nacional de Educação, “a educação escolar indígena possibilita aos anciões dialogarem com os jovens, assim, nós trabalhamos de maneira integrada com os conhecimentos universais”, diz ele. No entanto, o diretor considera que o diálogo sobre a educação escolar indígena com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) ainda precisa evoluir.

“A gente vê que o diálogo entre os conhecimentos tradicionais e o que pede a BNCC, muitas vezes, é possível. Mas há abordagens que não estão ali, então eu acredito que a BNCC contemple apenas 50% dessa educação diferenciada”, opina. Ele diz que, apesar de ter os direitos garantidos em leis federais, estaduais e municipais, a educação escolar indígena enfrenta desafios para acontecer com qualidade, respeito e continuidade. “Mesmo que a gente crie projetos para valorizar os conhecimentos tradicionais indígenas, o sistema de ensino tem necessidades que, às vezes, ocupam o tempo que poderia ser investido nesses saberes. A escola fica perdida entre atender a essas demandas ou colocar em prática o projeto que a comunidade quer, de acordo com suas vivências”, considera o diretor da Escola Indígena Kanata T-Ykua.

Temática indígena não pode ficar restrita a abril

Edson Kayapó reforça esse ponto de vista ao lembrar que os projetos pedagógicos e curriculares descritos nos documentos oficiais da educação nacional não podem restringir o tema indígena ao 19 de abril.

“Hoje, nos reportamos ao abril indígena, que é um mês inteiro de diálogo sobre essas questões. Mas, obviamente, a temática tem que ser transversal, estar presente no dia a dia de todas as disciplinas. Há mais de 270 línguas e 300 povos indígenas diferentes no Brasil, então é necessário que os educadores e os documentos oficiais se apropriem das informações para compreender a diversidade dos nossos povos ao seguir com suas ações pedagógicas”, diz.

Por outro lado, Edson acredita que parte importante da BNCC – e que muitas vezes não é colocada em prática nos currículos – está na sua introdução, quando o documento aborda a necessidade de considerar especificidades e pluralidades da sociedade brasileira.

“Isso vale tanto para as escolas indígenas, nas terras indígenas, quanto para as escolas não indígenas. A BNCC, por exemplo, dialoga com a Lei 11.645 de 2008, que fala da obrigatoriedade do ensino de história e culturas afro-brasileira e indígena nas escolas”.

Formação de professores e educação indígena

Entre 2014 e 2016, Severiá Maria Idioriê, filha de mãe Javaé e pai Karajá, do rio Araguaia, em Goiás, estudou a importância da língua A’uwe/Xavante na formação de professores xavantes. Ela é mestra em Educação pela Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) e, atualmente, coordenadora na Escola Estadual Indígena de Educação Básica Samuel Sahutuwe, na aldeia Etenhiritipá, em Canarana (MT).

Em sua pesquisa, Severiá identificou a importância da educação bilíngue, “como estratégia para conhecer o outro e a si mesmo, para buscar os caminhos que assegurem a tradição do modo de ser Xavante”. Ela pontua que o educador precisa de uma formação que permita a ele analisar toda a realidade existente no interior da sua aldeia e na sociedade, para compreender o que fortalece ou influencia negativamente o seu povo.

“Esse processo de formação de professores no Mato Grosso ocorreu a partir das reivindicações dos povos indígenas e culminou com a criação dos cursos de licenciatura intercultural na Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), em Barra do Bugres, em 2000. Até aquele período, o olhar e a prática ofertados pela política indigenista se baseavam apenas na assimilação e na integração dos povos indígenas”, lembra Severiá.

No mesmo contexto de formações, Edson Kayapó cita o exemplo do Instituto Federal da Bahia (IFBA), onde professores estão sendo qualificados para promover um diálogo intercultural e atuar nas escolas indígenas da região.

“Na escola do povo Pataxó, no sul da Bahia, há professores que hoje trabalham nessa perspectiva com muito afinco, no sentido de fortalecer, valorizar e autorizar as tradições entre as crianças e os adolescentes. Nós percebemos que, por dentro da escola, essas tradições estão se fortalecendo, são povos que, cada vez mais, apresentam orgulho de pertencimento, que estão fazendo esse movimento de revitalização das suas línguas originárias”, destaca o historiador.

A valorização da identidade da criança e do jovem indígena também acontece na Escola Indígena Kanata T-Ykua, onde Raimundo Kambeba é diretor. Por lá, a equipe educadora desenvolve uma pedagogia de projetos voltados aos conhecimentos tradicionais: “A comunidade escolhe o tema que vai ser trabalhado. Por exemplo, se decidirem por pinturas corporais, chamamos as pessoas mais velhas, conhecedoras desses grafismos e de seu significado, para fazerem oficinas, palestras e contação de histórias. Dessa mesma forma, é possível trabalhar com música indígena, história de cada povo, os tipos de comida e muito mais”.

Diante desses exemplos, Severiá lembra que, muitas vezes, os conhecimentos dos povos originários ficam no campo do folclore. “Por isso, é fundamental reconhecer que o Brasil é feito de povos indígenas e estabelecer o diálogo para construir uma educação escolar que valoriza as diferentes visões de mundo, de línguas, de saberes e compreender que cultura e educação andam juntas, que elas não estão paradas no tempo e no espaço”, conclui.

Docência e ancestralidade

Tanto Severiá quando Edson Kayapó sugerem que os professores se vejam como pesquisadores e se apropriem das novas tecnologias, seja para buscar conhecimento ou fazer dela um instrumento de contato com o mundo fora da aldeia.

Edson cita o site da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que vem produzindo literatura indígena. “[São lugares onde] a história está sendo recontada com protagonismo indígena, a partir das nossas cosmologias, dos nossos modos próprios de conceber o mundo, então os professores podem buscar esse diálogo”, sugere.

Edson Kayapó considera que ser professor é buscar o mundo da leitura e da ciência, mas, ser professor indígena é colocar tudo isso em contato com as próprias ancestralidades.

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