A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) inicia nesta semana um estudo para avaliar se gestantes Munduruku estão sendo contaminadas pelo mercúrio usado no garimpo ilegal e se há consequências para os bebês.
O objetivo da pesquisa é avaliar os efeitos da exposição à substância no neurodesenvolvimento de crianças Munduruku que vivem em áreas de influência de garimpos de ouro no Médio e no Alto Tapajós.
Gestantes que queiram participar da iniciativa serão acompanhadas ao longo da gravidez até o momento do parto. Após o nascimento da criança, a mãe será convidada a permanecer em acompanhamento até o bebê completar dois anos de idade.
O garimpo ilegal de ouro é um problema na região desde os anos 1980, mas piorou muito em períodos mais recentes. No final de 2022, depoimentos encaminhados ao Ministério Público Federal (MPF) apontam que houve aumento da tensão e intimidação por parte dos garimpeiros ao povo Munduruku nos últimos anos.
Riscos do mercúrio
O mercúrio é usado na extração ilegal de ouro para separar o metal de outros sedimentos. Depois, é descartado sem qualquer cuidado nos rios, passa por um processo químico e se transforma em uma substância ainda mais tóxica: o metilmercúrio, que contamina dos micro-organismos aos peixes carnívoros.
A concentração do metilmercúrio se torna cada vez mais alta dentro da cadeia alimentar, conforme fica retido nos organismos, em um processo denominado bioacumulação. Conforme os peixes são consumidos, o metal pode se instalar no organismo humano.
Nas pessoas, a intoxicação por mercúrio pode provocar problemas respiratórios, renais e atacar, principalmente, o sistema nervoso.
O mercúrio entre os Munduruku
Um levantamento anterior da Fiocruz, realizado em 2019, coletou amostras de cabelo de 200 indígenas em três aldeias Munduruku no médio Tapajós, além de amostras de peixes consumidos na região.
A pesquisa foi feita em resposta a uma carta enviada pela liderança Alessandra Korap Munduruku, da aldeia Sawré Muybu, em 2017. O documento já denunciava o avanço do garimpo ilegal e pedia que a contaminação por mercúrio fosse “investigada com profundidade”. “Não é apenas o nosso rio que está sofrendo com isso, nós Munduruku também estamos”.
Em todos os participantes — adultos, crianças e idosos — foram detectados níveis de mercúrio. Seis a cada dez indígenas apresentaram níveis acima dos limites considerados seguros. Os peixes também estavam contaminados.
Nas áreas mais impactadas pelo garimpo ilegal, nove entre cada dez participantes registraram alto nível de contaminação.
“As pessoas com maiores níveis de contaminação apresentavam com mais frequência sintomas neurológicos, problemas de reflexo, capacidade motora, alterações cognitivas”, explica o pesquisador da Fiocruz Paulo Basta, coordenador do levantamento anterior e do estudo de agora.
Na ocasião, crianças menores de cinco anos passaram por testes de neurodesenvolvimento; 16% apresentaram problemas de coordenação motora e na fala.
“Além dessas evidências, o próprio povo Munduruku e os profissionais que trabalham no território relatam que há crianças nascendo com má formação. Há uma suspeita de que esses problemas estejam associados à exposição crônica ao mercúrio, já que o garimpo é um problema que está instalado há décadas na região”, diz ele.
A questão é que o levantamento anterior, por ser uma “fotografia” em determinado momento no tempo, não pôde observar correlações diretas de causa e efeito.
“Encontramos associações estatísticas fortes entre altos índices de contaminação e sintomas neurológicos, mas não podemos falar de causalidade”, explica o pesquisador.
Ou seja: cientificamente não foi possível afirmar, categoricamente, que os problemas de saúde observados foram causados pelo mercúrio no organismo.
Agora, o estudo que pretende acompanhar gestantes e seus bebês por 24 meses quer responder à seguinte pergunta: a exposição pré-natal ao metilmercúrio, por meio do consumo de peixes contaminados, afeta o neurodesenvolvimento infantil, provocando, por exemplo, atrasos cognitivos, problemas de coordenação motora?
Como vai funcionar
Profissionais de saúde que atuam no território, entre eles enfermeiros e técnicos de enfermagem indígenas, vão ficar atentos ao aparecimento de gestantes em dez aldeias Munduruku do Alto e do Médio Tapajós.
Quando uma mulher no início da gravidez for identificada, ela será convidada a participar do estudo, que avaliará os níveis de exposição ao mercúrio em três momentos diferentes até o parto, com coleta de amostras de cabelo e do cordão umbilical.
Depois do nascimento da criança, a mãe será convidada a permanecer no estudo, que fará o monitoramento do bebê por 24 meses.
A estimativa é que o estudo alcance cerca de 250 gestantes e bebês.
O estudo está sendo realizado com apoio da Sesai (Secretária de Saúde Indígena) por meio do DSEI (Distrito Especial de Saúde Indígena) Rio Tapajós, que abarca uma população total de mais de 14 mil indígenas. A Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e o Ministério da Saúde também acompanham a iniciativa.
Segundo Hans Kaba, coordenador regional da Funai, o trabalho será muito importante para tirar dúvidas a respeito do mercúrio e das doenças causadas por ele.
“Isso não é de hoje, veio logo quando o garimpo chegou. O garimpo trouxe muita malária, malária da brava, além de diarreia. Não é só o mercúrio”, explica ele.
Mercúrio: problema em outras Terras Indígenas
Entre 2016 e 2022, o garimpo ilegal aumentou mais de oito vezes em terras indígenas no Norte do Brasil, segundo dados do Inpe. Durante o governo Jair Bolsonaro, o ex-presidente se reuniu com garimpeiros e afirmou diversas vezes que queria autorizar a atividade ilegal em territórios indígenas.
O avanço da atividade ilícita faz da contaminação por mercúrio uma realidade em vários territórios e até nas cidades. Pesquisa divulgada em maio identificou que peixes consumidos pela população em seis estados da Amazônia tinham contaminação por mercúrio com concentração do metal cerca de 21% acima do permitido.
Em fevereiro, a Polícia Federal coletou amostras de cabelo em 14 regiões da Terra Indígena Yanomami, a maior do Brasil, localizada em Roraima e Amazonas, e identificou que 77% dos indígenas apresentavam alto nível de exposição ao metal pesado.
Reunião da Convenção de Minamata com indígenas brasileiros e sul-americanos
Na semana passada, o Secretariado da Convenção de Minamata, da ONU, fez uma consulta formal aos povos indígenas de oito países sobre o mercúrio em suas terras.
Entre os representantes brasileiros, estavam indígenas das etnias Yanomami, Kayapó e Munduruku, as mais impactadas pelo garimpo ilegal.
As demandas do encontro, realizado no Palácio do Itamaraty, em Brasília, serão levadas à cúpula da Convenção, um acordo internacional adotado em 2013, que busca apoiar os países na adoção de práticas mais seguras em relação ao mercúrio.
O nome faz referência à baía japonesa de Minamata, onde o esgoto de indústrias contaminado por mercúrio envenenou milhares de pessoas em meados do século 20. A população começou a apresentar problemas como perda de visão, comprometimento da capacidade motora e muscular, além do nascimento de crianças com problemas neurológicos. A epidemia ficou conhecida como “doença de Minamata”.
“O que está acontecendo nas Terras Indígenas é igual ao que aconteceu no Japão”, diz Junior Hekukari Yanomami, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami.
“Nós assistimos a um filme sobre Minamata e eu vi os mesmos sintomas, as mesmas características que vejo entre os yanomami. O mesmo sofrimento”, contou ele.
Para Junior, o encontro foi importante para demandar às autoridades segurança e proteção para os territórios. “Nós estamos falando: já estamos contaminados. Precisamos de solução”.