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Após Justiça proibir indígena de exercer função de cacica em aldeia no PA, MPF diz que medida é ‘ilegal’

Conflito entre indígenas deixa três feridos no Pará. Adolescente é transferida para Belém. — Foto: Reprodução

Uma ação do Ministério Público Federal (MPF) pede para a Justiça do Pará anular medidas cautelares contra a cacica indígena Miriam Tembé, que a impedem de cumprir a função de liderança. Ela havia sido presa, mas foi solta a pedido do MPF. Para o órgão, a prisão e as medidas aplicadas pela Justiça são “ilegais”. O pedido agora está sob análise do Poder Judiciário.

Miriam Tembé é liderança da aldeia I ́ixing em Tomé-Açú , no nordeste do Pará, e presidente da Associação Indígena Tembé do Vale do Acará – região que vive escalada de violência nas disputas de terras reivindicadas pelos indígenas.

Em um vídeo gravado antes da prisão, a cacica estava em frente à Delegacia de Homicídios da Polícia Civil em Belém para denunciar os ataques que a aldeia dela vinha sofrendo.

Mas após ter feito as denúncias Miriam acabou sendo presa, dias depois, em 3 de janeiro, suspeita de coação no curso do processo e ameaça. O MPF defende que contra ela não haveria elementos que motivassem a prisão preventiva.

Um dia após a prisão, a aldeia foi novamente alvo de pistoleiros, que deixaram três pessoas feridas em na segunda invasão à aldeia em menos de uma semana.

A cacica deixou a prisão no dia 27 de janeiro, a pedido do MPF, para cumprir medidas cautelares, no entanto as medidas foram consideradas “ilegais” pelo órgão.

Habeas corpus

O pedido de habeas corpus do MPF foi feito na quarta-feira (13) contra as decisões tomadas pelo juízo criminal de Tomé-Açu, no nordeste do Pará.

Segundo os procuradores signatários do pedido do MPF, a prisão é considerada ilegal e as medidas cautelares “violaram normas constitucionais, convencionais e legais”.

“Essa medida judicial afronta a livre organização do povo Tembé Tenetehara, privando os demais indígenas de terem Miriam Tembé como liderança e cacique da sua aldeia”, afirmam.

No pedido, são citadas normas e direitos que foram violados nas decisões judiciais. São elas:

  • omissão e falta de indicação de requisitos para a prisão;
  • inexistência de conduta que justificasse a prisão;
  • insuficiência de fundamentação para a necessidade de prisão preventiva;
  • falta de indicativo de que a liberdade da indígena representaria ameaça à ordem pública;
  • inexistência de indícios de que Miriam Tembé evitaria participar da instrução criminal (fase processual penal destinada a deixar o processo em condições para o julgamento);
  • violação à livre organização das comunidades indígenas, representada pelo afastamento de uma liderança indígena do exercício da função de cacique e pela restrição de sua locomoção e convívio com os demais integrantes da aldeia, por meio de uma decisão judicial;
  • desrespeito à autodeterminação e à auto-organização, que estão entre os direitos coletivos mais fundamentais do regime constitucional e internacional de direitos indígenas;
  • punição de caráter coletivo representada pelo afastamento da indígena da condição de cacique, o que viola o princípio constitucional da intranscendência penal;
  • desrespeito aos costumes e às características econômicas, sociais e culturais do povo Tembé Tenetehara;
  • não cabimento de imposição obrigatória, por meio de decisão judicial, que determine mudanças na estrutura social indígena.

 

O Tribunal de Justiça do Pará (TJPA) não comenta decisões judiciais, mas informou que o processo nº encontra-se em apreciação no 2º grau.

Criminalização

Ainda segundo o MPF, a prisão da cacica está dentro de uma “sistemática de criminalização de lideranças indígenas” em Tomé- Açu. Isso ocorre, segundo o MPF, diante das disputas de terras onde há plantações de dendê e que estão em litígio, sendo reivindicadas pelas comunidades tradicionais.

“A ação de habeas corpus registra que a prisão não deve ser vista isoladamente, mas sim examinada considerando as especificidades e o caráter multifatorial da demanda que expõe uma crescente onda de violência contra os indígenas Tembé na região, paralelamente ao avanço dos grandes empreendimentos na localidade”, afirma.

“Evidencia-se implicitamente o objetivo de isolar a Cacica Miriam Tembé das decisões, orientações, organização e representação de sua própria comunidade”, diz a ação.

Vulnerabilização

O MPF também alerta, na ação, que a decisão judicial “coloca em situação de vulnerabilidade o povo Tembé Tenetehara frente ao conflito contra as grandes empresas de dendeicultura, tendo em vista a imposição da ausência de uma forte liderança local”.

“Afastar uma liderança indígena da função de cacique não é o mesmo que afastar, por exemplo, um prefeito ou governador do cargo. A liderança indígena, enquanto investida na função de cacique, representa e sustenta toda estrutura organizacional da etnia, e, em algumas situações, é a única referência dentro da estrutura social e política de uma etnia que luta junto aos órgãos e instituições por regularização fundiária, melhorias na saúde e educação, dentre outros direitos básicos”, ressalta.

Para o órgão, “ter afastado a indígena das funções pode colocar em risco direitos coletivos da comunidade indígena como um todo, uma vez que provavelmente não haverá outro indígena para ocupar as mesmas funções de forma urgente ou mesmo a médio prazo”.

Entenda o caso

Antes de ter sido presa, Miriam Tembém denunciava que a comunidade indígena havia sido alvo de invasão, ameaça e tiros na madrugada no dia 30 de dezembro de 2023, por volta das 2h.

Segundo o relato, um grupo de três indígenas seria o responsável pelo atentado, acompanhado de pistoleiros. No local estavam crianças e mulheres. Ninguém ficou ferido.

A cacica afirmou que um grupo indígena ligado a outra liderança da região, Paratê Tembé, estaria envolvido com o crime a fim de tomar à força as terras para o cultivo e venda de frutos de dendê. Paratê foi preso pela Polícia Federal.

O crime no dia 30 de dezembro ocorreu na comunidade I’ixing, localizada no KM 1 do Ramal Vila Socorro. No local, estariam dormindo crianças e mulheres que correram para a mata quando o trio de indígenas chegou e começou a disparar balas de fogo em direção ao barraco central da aldeia, de acordo com a liderança.

A cacica revelou que só conseguiu se livrar do tiroteio pois quinze minutos antes do atentado havia saído do local. Ela afirmou que a comunidade corria perigo e os próprios familiares seguiam sendo ameaçados de morte.

“Por 15 minutos após a minha vida não foi ceifada, eles querem a qualquer custo me matar”, declarou Miriam Tembé.

Após o ataque, a comunidade identificou que uma das balas atingiu o banco do passageiro do veículo do irmão da cacica, espaço onde ela sempre costuma andar quando se desloca para o centro da cidade.

Em relato para a polícia, Miriam destacou que essa não foi a primeira vez que foi atacada. No dia 14 de dezembro, outro atentado também teria sido orquestrado pelo mesmo trio de indígenas, e que na ocasião, o próprio carro da cacica teria sido depredado, por isso estaria utilizando o veículo do irmão.

Segundo Miriam, o grupo de invasores faz uso de forte armamento, incluindo armas com laser e tem um quantitativo de aproximadamente 100 pessoas, entre indígenas da comunidade Tembé, aliados a pistoleiros, atravessadores e compradores do fruto de dendê, além de outras pessoas não indígenas.

A cacica divulgou um vídeo em frente à Divisão de Homicídios em Belém, depois de registrar o boletim de ocorrência. Ela detalhou que já oficializou as denúncias a todos os órgãos competentes e afirma que “em nenhum momento houve medidas de proteção para a comunidade afetada”.

“Se eu tiver a minha vida ceifada, o meu sangue estará nas mãos de todos os que eu denunciei e em nenhum momento tomaram providências. A vida do meu povo, da minha aldeia corre sério risco!”, afirmou Miriam Tembé.

No dia do atentado a Polícia Militar, Força Nacional e Polícia Federal teriam ido até o local para saber detalhes do que estava ocorrendo, porém segundo a vítima nada fizeram.

Desde outubro de 2023 a Força Nacional vinha atuando na região para contenção de conflitos por terras.

O prazo de permanência venceu no dia 3 janeiro, mas, segundo o MPF, a tensão ainda se mantinha alta na região e a presença dos agentes não foi continuada desde então.

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