Além de enfrentar as consequências do alagamento da Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, causadas pelas cheias nas primeiras semanas de outubro e pelo fechamento da Barragem Norte, os povos indígenas da região foram alvos de discursos de ódio nas redes sociais e em grupos de Whatsapp.
O ápice da tensão no território foi quando o governo catarinense determinou o fechamento das duas comportas da estrutura de contenção sem cumprir o acordo de assistência emergencial previamente estabelecido com os indígenas.
A ação foi executada com o uso da força militar, em 8 de outubro. A Polícia Militar usou spray de pimenta e balas de borracha para dispersar um grupo que protestava contra o descumprimento da negociação. A situação foi divulgada pela Juventude Xokleng, através de publicações e transmissões ao vivo.
Enquanto o conflito ocorria, estudantes entre 14 e 16 anos, do curso técnico em administração integrado ao ensino médio do Instituto Federal Catarinense, em Ibirama, fizeram comentários racistas e preconceituosos contra os indígenas e duas professoras da instituição no grupo de Whatsapp da turma. “Joga uma carteira de trabalho some os índio tudo”, “bala nos índios” e “se estourar [a barragem] dá pra pescar os índio tbm” foram algumas das frases racistas trocadas pelos jovens.
Ao receber as capturas de tela, Kozikla Sanara Criri Rodrigues, de 17 anos, comunicadora da Juventude Xokleng que atuava na linha de frente da divulgação do conflito no território, decidiu publicá-las como forma de denúncia.
“Se eles têm coragem de falar essas coisas no Whatsapp, eles precisam ter coragem de que outras pessoas vejam”, disse Rodrigues em entrevista ao Catarinas.
A jovem é a única estudante indígena do ensino médio da instituição. Ela faz o segundo ano do curso técnico em administração. “Desde que eu entrei existe essa mesma situação [de racismo], e a instituição faz pouco caso. Trata como se fosse uma briguinha entre alunos”, afirmou.
Os casos de discriminação não são novidade no IFC Campus Ibirama. Em 2022, uma estudante negra foi chamada de “macaca” por um colega. O aluno denunciado passou por um processo disciplinar e recebeu instrução para realizar pesquisas sobre o tema e organizar uma apresentação à Comissão de Análise de Conduta Discente.
Desta vez, o Instituto também instaurou um processo para apurar a conduta dos discentes, que atualmente está na fase de oitivas.
Por nota, a reitoria disse que adota medidas educativas para impor limites e promover a conscientização dos estudantes. A severidade varia de acordo com a gravidade de cada ocorrência. Para alunos do nível médio, pode ir desde advertência escrita até transferência compulsória.
No Brasil, a injúria racial, que consiste em ofender a honra de alguém por questões vinculadas a marcadores como raça, cor, etnia, religião ou origem, é tipificada como crime de racismo. O racismo é o preconceito e a discriminação com base na etnia, características físicas, costumes ou crenças. O que neste caso foi direcionado aos povos indígenas. A homofobia e a transfobia foram equiparadas ao crime de racismo pelo Supremo Tribunal Federal, em 2019, tornando-se imprescritíveis e inafiançáveis.
O delegado da Comarca de Ibirama, Daniel Sclifo Zucon, informou que os fatos estão sendo apurados pela Polícia Civil.
Professoras são xingadas e ameaçadas por defenderem inclusão e diversidade
A professora Aline Meyer, de artes, e Amália Cardona Leites, de língua portuguesa, ambas coordenadoras do Núcleo de Estudos de Gênero e Sexualidade (Neges) e Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas (Neabi), respectivamente, foram citadas nas conversas.
Os estudantes falaram da atuação das professoras de forma pejorativa, incluindo mensagens como “essa mulher tem problema”, “neabi só tem índio e preto”, “ela é lgbt, aí é tudo a mesma merda, neges neabi”, “vo taca um indio na cabeça da aline”. Em referência a uma suposta atuação de uma das professoras no conflito entre PM e indígenas, um dos alunos disse: “faltava essa vagaba sobreviver”.
Os núcleos fazem parte da Política de Inclusão e Diversidade da Instituição, implementada em 2020. Junto com os dois já citados, existe um terceiro de Acessibilidade às Pessoas com Necessidades Específicas (Napne). O objetivo é promover uma educação que valorize a diversidade e os direitos humanos, através de debates obrigatórios sobre diversos temas.
Além disso, os grupos de inclusão são espaços de resistência e acolhimento para quem sofre algum tipo de discriminação. “Parece que algumas pessoas se incomodam por termos esse espaço de resistência para quem tem diversidade étnico-racial, de gênero e orientação sexual”, afirmou Leites.
Para Meyer, que trabalha com educação pública desde 2006, os ataques direcionados às duas docentes estão diretamente relacionados às pautas de promoção da inclusão e respeito à diversidade que trabalham.
“A gente tem um mundo dentro da sala, todos os tipos de pensamentos. Tem muita gente que traz coisas de casa, como preconceitos, e acaba reverberando ali, mas precisamos falar e educar no ambiente educacional. Só que falar sobre esses temas aqui [em Ibirama] é coisa de comunista, esquerdista, de doutrinador, de feminista. Como se fosse algo pejorativo”, afirmou a professora.
Em 2022, a docente de artes foi alvo de xingamentos e ataques em uma campanha de difamação pelas redes sociais que ganhou repercussão com ajuda de políticos locais, conforme reportagem da Agência Pública. O medo que sentiu ainda está muito presente e, com esse novo episódio, ela se afastou da escola.
“Quando recebi esses prints, fiquei muito triste. Foi como se eu tivesse recebido um soco. Fiquei chocada, porque tem muita violência naqueles diálogos. Uma violência que parece ser algo normal para eles”, disse. Com 90 dias de atestado, Meyer não deve voltar à sala de aula neste semestre. “Nem sempre conseguimos ser uma super-heroína. Decidi me priorizar agora”, contou.
Já a professora de língua portuguesa, que atua na instituição desde 2021, teve seu nome citado em casos de discurso de ódio pela primeira vez. “A questão de ser mulher pesa. Se fossemos homens, não nos chamariam de vagabunda e teriam mais respeito. O único professor de quem eles falam bem nos prints é um homem”, afirmou. As educadoras registraram boletim de ocorrência por injúria racial e difamação.
Aluno usou imagem de Hitler durante as conversas
Um dos estudantes denunciados usou uma figura de Adolf Hitler durante as trocas de mensagens. A referência ao nazismo acendeu um alerta nas professoras, que se preocupam com a presença de grupos extremistas no Vale do Itajaí, onde localiza-se Ibirama.
A preocupação não é à toa, visto que uma pesquisa identificou 69 células neonazistas de três a quarenta pessoas em Santa Catarina em 2020. Em termos de proporcionalidade populacional é o estado com maior presença desses grupos.
Para o historiador João Klug, entrevistado anteriormente pelo Catarinas, a colonização de alemães com uma visão de superioridade, de serem agentes da civilização e da cultura do trabalho na região, foi se introjetando com o apoio das elites locais. Isso ajuda a entender o campo fértil para a extrema direita.
“Há uma tolerância com discursos que começam em tom de piada, que têm um cunho racista, machista, misógino. Essas formas de fazer brincadeiras escondem atrás de si questões muito sérias”, afirmou Klug.
O doutor em História Social disse ser comum encontrar jovens empunhando alguns símbolos do antigo nazismo e que eles têm dificuldade de dialogar com o diferente.
“A ideia de alteridade não está presente. Uma das questões que se evidenciam é as pessoas que se negam ao diálogo, porque não têm argumentos. Quando não há argumentos, eles falam nos punhos. É onde aparece a violência, a agressividade com os negros, com o homossexual, com o indígena etc”, afirmou.
Apesar de não terem uma receita, as professoras do IFC acreditam que uma educação antirracista e crítica pode ser um caminho para combater o ódio, o racismo e o fascismo. “Nós temos que seguir investindo em uma educação antirracista, que fale da história do nosso país. Esses alunos precisam ser orientados e educados de maneira séria e com responsabilidade”, falou Meyer.
Leites pede uma diretriz mais clara da direção do IFC e do próprio Ministério da Educação para enfrentar a situação: “Quando acontece perseguição e discurso de ódio parece que sempre estão pensando o que fazer com fatos isolados. Não temos orientação para como discutir e como atuar com essa questão nas escolas”.
A estudante indígena Kozikla Rodrigues admitiu ter pensado em desistir várias vezes. “Estudar lá cansa, mas quero me manter forte”, disse. Ela deseja que seja feito um processo disciplinar sério, com medidas adequadas e que os pais desses alunos sejam incluídos no debate.
A reportagem entrou em contato com a mãe de um dos alunos denunciados, porém, ela não quis comentar o caso.