“Mexeram com meu filho. Agora mexeram comigo. Uma semana os índios vão ficar vivos. Uma semana só. Ou a justiça resolve ou eu resolvo. Uma semana. Tu me conhece, tu sabe. Eu vou matar todos os índios de Rio do Oeste. Esse áudio depois tu manda pra frente. Depois que eu matar. A justiça não resolveu. Surraram…quase mataram meu filho. Em cinco índio bateram no meu filho de menor. E a militar não fez nada. Então vai ser feita a justiça com as minhas mãos, entendeu? Os índios de Rio do Oeste vai ser todos morto, mortos pela minha mão, Silvio dos Santos, vereador. Eu vou matar todos eles! Mexeram com o cara mais errado do mundo de Rio do Oeste. Mexeram com o cara mais errado do mundo. Agora esses índio vai ser tudo morto.”
O áudio transcrito acima, vazado pelo whatsapp, foi reproduzido no feriado de Tiradentes (último 21 de abril), em uma caixinha de som para que todos escutassem em volta de uma fogueira onde se assava carne e aipim em celebração familiar na semana do “dia do índio”, na Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, em José Boiteux (SC). Os parentes Xokleng discutiam o que fazer frente às ameaças de morte proferidas de forma tão escancarada e supostamente gravadas pelo vereador de Rio do Oeste (SC), Silvio dos Santos (PSD), enquanto me contavam as razões para o episódio.
Os fatos que vou analisar aqui foram publicados pela Agência Pública no dia 27 de abril de 2023. A reportagem denuncia que os indígenas do povo Xokleng foram alvo de ameaças de morte, racismo, agressões físicas e verbais por parte da população e das autoridades municipais de Rio do Oeste, por contestarem a exposição de ossadas de seus ancestrais como ponto turístico e reivindicarem a criação de uma aldeia no local. Minha análise busca evidenciar que a história dessa retomada Xokleng e seus desdobramentos nos fornecem um retrato preciso das relações de violência colonial a que os povos indígenas foram e estão até hoje submetidos no Brasil.
A Gruta do Tigre
Em Rio do Oeste, município de Santa Catarina de cerca de 6 mil habitantes, há um local chamado Gruta do Tigre. Além de um lugar belíssimo, em que a mata atlântica se encontra com enormes formações rochosas, a Gruta do Tigre é um sítio arqueológico onde foram encontrados diversos ossos humanos, lanças, pontas de flecha e cerâmica indígena. Segundo os Xokleng, tratava-se de um local de refúgio de seus antepassados contra os bugreiros, que eram matadores de índios profissionais, milícias fortemente armadas criadas oficialmente pelo governo provincial e atuantes até pelo menos o início do século XX – cerca de cem anos atrás. Martim Bugreiro foi um dos mais conhecidos daquela região. Conta-se que ele e seu bando atraíam os indígenas para festas, embebedava-os para depois matá-los, ou armavam tocaias para realizar suas chacinas. Depois de assassinar os indígenas, os bugreiros arrancavam suas orelhas, pois recebiam recompensas por cada uma delas. Queimavam seus ranchos e casas, e dividiam seus pertences (lanças, arcos, flechas etc), que exibiam como troféus.
Enquanto cemitério indígena, a Gruta do Tigre concentra não só vestígios arqueológicos fundamentais, como guarda parte importante da memória material e da ancestralidade do povo Xokleng no Alto Vale do Itajaí, marcada por toda sorte de violências, batalhas e resistências. Por causa dos massacres indígenas, famílias brancas invadiram o local e o tornaram propriedade privada. Com o passar do tempo, essa propriedade foi doada para a Igreja, que por sua vez a vendeu para a Prefeitura Municipal, que por fim a transformou em Parque. O local foi batizado de “Gruta do Tigre” por causa dos rastros de jaguatirica que os moradores viam por ali.
O Parque Municipal cedeu parte do terreno para um restaurante (o Restaurante Gruta do Tigre) que funciona no local há dezenove anos. Conhecido por sua culinária colonial, serve almoços aos domingos e realiza eventos como festas, piqueniques e casamentos. Na gruta propriamente dita, são realizadas missas católicas, pois em 1987 instalou-se ali um santuário à Nossa Senhora Aparecida para quem os fiéis vão orar sentados em bancos de pedra. A Gruta do Tigre é hoje conhecida como um local para “turismo religioso em meio à natureza”.
Logo à entrada do restaurante, em frente a um bucólico lago de carpas, há uma placa que diz: “Homenagem aos nativos Xoklengs e Kaigans [sic], habitantes de nossos Vales ao primeiro contato com os colonizadores”. Ali, uma estátua dourada de um indígena imponente, com seu arco e flecha apontado para o alto, contrasta com uma caixa de acrílico em que se apresentam “ossos indígenas encontrados na Gruta do Tigre”. Um crânio humano e alguns ossos jogados, dividem espaço com “ossos do 1º bugio liberado na Gruta do Tigre pelo Ibama”.
A saga do povo Xokleng
Enquanto a Gruta do Tigre passava de refúgio e cemitério indígena à propriedade privada, terreno da igreja e local turístico, o povo Xokleng, além de ter suas terras invadidas e ser “caçado” por bugreiros, passou por toda forma de exploração, perseguição cultural, estupros, escravização e catequização forçada. Em razão da resistência indígena a esses ataques, em 1914 o governo catarinense destinou uma área de 40 mil hectares para que eles ficassem confinados e o restante do território fosse entregue “pacificamente” aos imigrantes europeus (contexto em que a Gruta do Tigre passou à posse de famílias brancas). Os conflitos não cessaram, e em apenas seis anos (de 1926 a 1932) o povo Xokleng perdeu 70% de sua população, chegando quase ao extermínio. Grande parte dos 40 mil hectares de terra destinados a ele foram invadidos por colonos. Em 1956 uma Terra Indígena de apenas 14 mil hectares foi demarcada para os povos Xokleng, Kaingang e Guarani, dos quais apenas 15% eram próprios para moradia e agricultura tradicional, o restante permanecendo como mata nativa.
Entretanto, mesmo dentro da Terra Indígena, os Xokleng não tiveram paz. Nos anos 1960 se iniciou um intenso processo de desmatamento levado a cabo pela invasão de madeireiras, com o aval da Funai à época. Em 1970 a construção da Barragem Norte, para contenção das enchentes em cidades industriais como Itajaí e Blumenau, alagou 900 hectares das áreas mais planas e agricultáveis da Terra Indígena, dividindo o território, famílias e aldeias e impactando profundamente sua organização social e meios de sustento. Por fim, no ano de 1977 o governo de Santa Catarina retomou parte das terras invadidas pelas madeireiras e, em vez de devolvê-las aos indígenas, criou a Reserva Biológica Estadual do Sassafrás em sobreposição à Terra Indígena, tomando mais uma parte importante do território.
A partir do início dos anos 1990, os Xokleng passaram a realizar retomadas de áreas tradicionais, reivindicando que a Funai reconhecesse ao menos os 40 mil hectares de terra que haviam sido originalmente destinados a eles em 1914. Em 1999 a Funai terminou seus estudos antropológicos e reconheceu 37.108 hectares como pertencentes à Terra Indígena. Porém, a demarcação física e a homologação da área total ainda não foram realizadas. Foi o próprio Governo de Santa Catarina que ressuscitou a tese do Marco Temporal para questionar o direito do povo Xokleng às terras das quais foram continuamente expulsos ao longo de todo o século passado. Como é de amplo conhecimento, hoje o caso está em julgamento no STF e seu desfecho terá repercussão para todas as Terras Indígenas do país.
A Terra Indígena Ibirama Laklãnõ fica no Alto Vale do Itajaí, incidindo, em sua maior parte, sobre os municípios de José Boiteux e Vitor Meireles, bem como parte de Doutor Pedrinho e Itaiópolis. O Alto Vale do Itajaí é uma região formada por 28 municípios, localizada no centro do estado de Santa Catarina e cuja economia é baseada principalmente na agricultura e na pecuária, além da indústria, varejo e turismo de aventura.
A retomada da Gruta do Tigre e a volta dos índios bravos
Diferente de barragens para produção de energia elétrica, as barragens de contenção, como a Barragem Norte, alagam e secam sazonalmente, de acordo com as chuvas, para segurar a força das águas nas cidades abaixo dela. Essa dinâmica causa fortes erosões nas encostas do rio e, recentemente, diversas famílias Xokleng que já haviam se mudado para as partes altas da Terra Indígena receberam a notícia, pela Defesa Civil, de que suas casas estariam condenadas. Assim estão sendo forçadas, mais uma vez, a abandonar seus lares.
Uma dessas famílias é a de Joselina Wailui Patté, da aldeia de Palmeirinha. E é aqui que nossa história volta a encontrar a Gruta do Tigre e o áudio que abre este artigo. Joselina e sua mãe, Nilza, saíam todos os finais de semana da Terra Indígena Ibirama Laklãnõ e percorriam cerca de 50km para vender artesanatos em Rio do Oeste, inclusive no Parque Municipal da Gruta do Tigre. O dono do restaurante costumava chamar indígenas Xokleng para fazer apresentações de dança tradicional aos turistas brancos. Ele mesmo mostrou à Nilza e Joselina os locais da Gruta do Tigre onde foram feitas escavações, contando que seu próprio pai gostava de retirar ossos e artefatos indígenas daquele local. Há oito meses, o dono do restaurante contratou o marido de Joselina para trabalhar. Este conta que era um “faz tudo”: cuidava do parque, roçava, limpava, descarregava caminhões, montava e desmontava eventos. Trabalhava de segunda a segunda, finais de semana e madrugadas, sem folga ou hora extra. Como “caseiro” do restaurante ele morava em uma casa dentro do Parque.
Não ocorreu ao dono do restaurante ou à Prefeitura que violar o espaço sagrado do Povo Xokleng; expor as ossadas de guerreiros e guerreiras indígenas brutalmente assassinados junto a ossos de macaco; ou explorar a cultura indígena como folclore para turistas, geraria qualquer tipo de reação negativa por parte da comunidade indígena viva hoje. Pelo contrário, julgavam estar “homenageando os primeiros habitantes da terra”, contando que estes já estariam exterminados ou “pacificados”.
Entretanto, em fevereiro de 2023, para grande surpresa do restaurante, do Parque Municipal e dos moradores de Rio do Oeste, duas famílias Xokleng, lideradas por Joselina e Nilza, ergueram barracas no estacionamento da Gruta do Tigre para reaver suas terras roubadas e o local sagrado do cemitério indígena, reivindicando, ainda, saber onde estão os restos mortais de seus antepassados e obter os resultados dos estudos arqueológicos realizados no local. A retomada, batizada de Aldeia Kuzug Lávan, foi realizada de forma pacífica. As duas famílias Xokleng ocuparam apenas a parte do estacionamento do Parque, deixando a entrada da Gruta e do restaurante livres para turistas e funcionários passarem normalmente.
Segundo a literatura antropológica, existem no Brasil dois mitos sobre os povos indígenas que povoam o imaginário da sociedade não indígena. O mito do “bom selvagem” e o mito do “índio bravo”. Ambos os mitos surgiram ainda na época da colonização, mas permanecem arraigados até hoje no senso comum.
O mito do “bom selvagem” é aquele que coloca o indígena como um ser que pertence ao passado, vivendo nas matas em harmonia com a natureza. É pacífico e até mesmo infantil. Na época colonial, representava os indígenas que se submetiam à Coroa Portuguesa, seja sendo exterminados e mortos, seja “entregando-se” às aldeias jesuíticas para serem catequizados. Mortos ou catequizados, não ofereciam perigo, e por isso eram e são enaltecidos como figuras que contribuíram para a construção do Brasil e da identidade nacional, mas que, “tragicamente”, não existem mais. A ideia de “pureza” que essencializa os indígenas como figuras paradas no tempo e avessas à modernidade vem da idealização impressa pelo mito do “bom selvagem”. Já o mito do “índio bravo” é aquele que enxerga os indígenas como preguiçosos, selvagens, brutos, violentos, avessos ao trabalho e empecilhos ao progresso. Na época colonial, representava os indígenas que não se submetiam à Coroa, seja fugindo para os sertões e interiores, seja confrontando diretamente as forças coloniais com ataques e resistência armada. Os “índios bravos” podiam ser legalmente escravizados, e contra eles eram realizadas as “guerras justas”, em que havia justificativa moral para seu extermínio.
A macabra “homenagem” na entrada do restaurante Gruta do Tigre, em que a estátua do indígena bucólico está junto aos ossos de indígenas mortos, é a perfeita caricatura do “bom selvagem”. O bom selvagem é imponente mas não oferece perigo, está morto e enterrado, pertence ao passado. A ossada, assim como as danças e o artesanato permitidos pelo dono do Restaurante, representam algo inofensivo, folclórico, feito para turistas brancos apreciarem, assim como os macaquinhos, o lago, as carpas e a gruta.
Para o povo Xokleng, no entanto, o passado colonial não ficou no passado. O mito do índio bravo não perdoou um povo que somente sucumbiu à “pacificação” quando já se haviam passado quatro séculos do início da colonização. Sua perseguição brutal teve desdobramentos que determinam a saga de sua existência, que até hoje é atravessada por todo tipo de ataques. A gruta que guarda os restos mortais de seus antepassados também tem um significado profundo para as gerações atuais, que deve ser honrado e respeitado. Inclusive, vale lembrar que de acordo com o Código Penal Brasileiro (artigo 212), vilipêndio de cadáver é crime.
No momento em que duas famílias indígenas são novamente expulsas de suas casas pelos impactos da Barragem Norte, levantam-se e agem contra aquilo que representa uma afronta à sua memória e a seus direitos, o mito do “índio bravo” rapidamente volta a operar no imaginário daqueles que os olhavam apenas como “bons selvagens”:
A primeira ação da Prefeitura diante da retomada foi cobrir com um plástico preto a vitrine dos ossos indígenas e fazer um pedido de reintegração de posse. O pedido foi impedido pela Funai e pelo Ministério Público Federal, que, em audiência de conciliação realizada no dia 20 de março, determinou que o acampamento poderia continuar ali por três meses, até que a Funai concluísse estudos a respeito da legitimidade do pleito indígena, com a condição de que a retomada não interferisse no funcionamento do restaurante ou do Parque.
O dono do restaurante e sua esposa, que se diziam “amigos” dos indígenas, rapidamente se transformaram em seus inimigos. A comunidade do entorno, apavorada com a presença indígena, começou a registrar boletins de ocorrência diariamente, com denúncias como 1) “viu os indígenas usando roçadeira e soprador”; 2) “disse que uma indígena teria ido em sua direção com uma enxada”; 3) “que as pessoas estão apreensivas com a ocupação indígena; que as escolas vinham fazer piqueniques no local; que faziam festas; que têm receio de perder tudo isso”; 4) “que adquiriram o terreno próximo e têm preocupação; que as pessoas vinham pagar promessa no local; que toda a comunidade está preocupada”; 5) “que os indígenas que estão no estacionamento ficam gritando quando a comunicante passa; que chegaram mais indígenas na última semana; que um dos indígenas foi em direção ao carro da comunicante gesticulando e falando alto, incitando outros a agirem da mesma forma”; 6) “que o movimento no restaurante diminuiu 70% depois da chegada dos indígenas; que o restaurante tem um custo perante a Prefeitura; que decidiram suspender as atividades do restaurante por enquanto, porque não conseguem se manter com a queda do movimento”, entre outros.
Verdadeira paranoia tomou conta da população não indígena. As famílias Xokleng – por volta de 15 a 25 pessoas – passavam os dias nas barracas construídas no estacionamento, cozinhando em um fogão a lenha, limpando o terreno e cuidando do espaço e das crianças, além de realizar seus cânticos sagrados. Como vemos nas denúncias, os não indígenas estavam com medo de sua mera presença, enxergando em cada pequeno gesto, um ato selvagem potencialmente ameaçador. Os boletins de ocorrência buscavam incriminá-los de alguma forma, pedir às autoridades que se livrassem de uma presença incômoda em sua vizinhança. Os Xokleng relatam que apareceu uma rede de pesca no lago, como forma de “comprovar” que estariam pescando sem permissão. Há ainda denúncias de que estariam cortando árvores e tirando palmito do entorno, entre outras, o que foi desmentido pelos indígenas e, segundo a reportagem da Pública, também pelo MPF.
Tanto o mito do índio bravo quanto o mito do bom selvagem justamente criam uma imagem mitológica dos indígenas, o que dá a ideia de que sejam pessoas incapazes de agir politicamente. Ao subestimar a capacidade política dos indígenas, a população não indígena responde com absoluta surpresa e ignorância, como se aquele ser que só existia em lendas, criasse vida própria e os viesse aterrorizar.
A revolta dos bugreiros
A hostilidade com que os indígenas passaram a ser tratados diariamente pela população foi acompanhada pela volta da noção de “guerra justa”, exemplificada pelos áudios supostamente gravados pelo vereador Silvio dos Santos (PSD):
Áudio 1: “Cara, nós tem que resolver isso antes de começar a vim gente, cara. Pegar esses índios lá…eu sou parceiro, eu vou de noite sozinho lá e resolvo, cara. Mas tem que ir o quanto antes, que daqui a pouco começa a chegar criança, chegar isso, chegar aquilo, não dá mais jeito. Tem que matar o mal pela raiz, rápido”. Áudio 2: “(…) Tem que ir lá e tocar embora, resolver cara. Porque daqui a pouco…depois que invadiu, esquece, tá”. Áudio 3: “Se precisar de mim, eu sou o primeiro, cara. Tô na pista”. Áudio 4: “O que é que vocês acham, nós como vereadores lá e… ficar lá na Gruta do Tigre, ficar lá e não deixar ninguém entrar? Eu sou parceiro. Quem quer ir comigo? Vamo lá e não deixamo eles entrar, cara! Somos vereador, falamo com o prefeito, seguramo. Eu sou o primeiro! Quem quer ir comigo? Eu posso buscar vocês nas casas aí, ó. Vamo enfrentar esses bicho no começo, porque depois ninguém dá mais conta”. Áudio 5: “Agora é a hora de nós fazer uma vala…seu Diolindo, vem com o trator que eu vou com a foice na frente [risos]”. Áudio 6: “É, mas eu…eu não sei se o prefeito tá vivo, porque ninguém falou nada, cara. Tem que começar a se mexer, cara”. Áudio 7: “Por isso que se não tem lei contra indígena, então não precisa ter lei contra nós também, né, cara. Isso que deixa o cara indignado, né cara…meu Deus do céu cara…não, não cara…o poste tá mijando no cachorro né cara, mudou tudo”.
Os áudios acima nada mais são do que a reencarnação do próprio espírito do bugreiro, em que um homem busca reunir um grupo para eliminar os índios com suas próprias mãos. Os Xokleng contam que certo dia o filho do vereador Silvio dos Santos (PSD), de 17 anos, apareceu na retomada desafiando os indígenas, dizendo que jogaria bombas ou atearia fogo de cima do morro para matá-los. Ao chutar as pernas de Joselina (que está grávida) e ameaçá-la com uma faca, outros indígenas a defenderam, imobilizando o rapaz e o expulsando do local. Ele, por sua vez, registrou um boletim de ocorrência. Em reportagem da RBA TV Alto Vale do dia 14 de abril, o vereador alega que seu filho teria sido gratuitamente atacado pelos Xokleng apenas por querer passear no parque. Esse acontecimento abriu margem para que a Prefeitura e a população local alegassem que os indígenas não teriam cumprido o acordo de respeitar os visitantes do Parque.
A Prefeitura e a Câmara dos Vereadores chamaram uma reunião com a população, segundo eles em busca de aplacar os ânimos da comunidade. Porém, o que se vê pela reportagem da RBA Alto Vale é o reforço da posição anti-indígena por parte das autoridades municipais:
“A gente se coloca no lugar da população sim, o prefeito se coloca…e o prefeito é bem franco de dizer, tá, que é contra algumas das leis federais. É revoltante, nosso povo paga os impostos e não tem o resultado. Quem não paga parece que é valorizado. Mas quem trabalha aqui é o povo de Rio do Oeste, quem fez história naquela gruta foi o nosso povo, os nossos parentes.” – Diogo Ferrari (PP), prefeito de Rio do Oeste, para a reportagem da RBA Alto Vale
“A gente sabe que as demarcações de Terras Indígenas aconteceram até a Constituinte de 88, e de lá pra cá, o que foi demarcado indígena, é indígena. O que não é, não é, e não pertence à comunidade indígena. Então aquele lugar é um lugar sagrado, um lugar santo, onde as pessoas vão rezar, vão buscar forças né, e a gente vê que hoje não está acontecendo.” – Marcelo Rocha (MDB), prefeito do município de Laurentino, para a reportagem da RBA Alto Vale)
Nessas falas, estão expressas as ideias de que o “nosso povo” são os não indígenas; de que o povo trabalhador são os não indígenas; de que quem fez história na gruta foram os não indígenas; de que a única manifestação sagrada na gruta é a não indígena. De quebra, o prefeito Diogo Ferrari afirma ser contra as leis federais, enquanto o prefeito de Laurentino aproveita a ocasião para afirmar como verdadeira a tese do Marco Temporal, ainda que esta não tenha sido julgada pelo STF. Paralelamente, os indígenas receberam o criminoso áudio citado no início deste artigo, em que o vereador promete matar todos os Xokleng com suas próprias mãos, caso eles não saíssem do parque em uma semana (convido o leitor a ler aquele trecho mais uma vez). À Pública, o vereador Silvio dos Santos afirmou que os áudios são montagens.
A Prefeitura aproveitou o momento para pedir uma nova reintegração de posse, alegando que os indígenas teriam descumprido o acordo de convivência pacífica até a finalização dos estudos da Funai. No dia 21 de abril, uma manifestação foi organizada pelos moradores brancos da cidade para expulsar os indígenas da Gruta do Tigre. Esta ocorreu algumas horas antes de ouvirmos o áudio na beira da fogueira, junto aos parentes Xokleng da Terra Indígena Ibirama Laklãnõ. Quando fomos visitar a retomada, no dia seguinte, Joselina e sua mãe Nilza estavam muito apreensivas e preocupadas, tanto com a reintegração de posse, quanto com as ameaças de morte que tinham recebido. Elas haviam denunciado as ameaças à polícia, entregando tanto a faca utilizada pelo filho do vereador, quanto os áudios recebidos, e aguardavam respostas. Relataram também um clima de hostilidade permanente, com provocação de ruídos, sirenes e tiros para o alto no entorno durante as madrugadas. Receberam até mesmo tentativa de suborno para que saíssem dali. Indignadas, elas nos diziam que não sairiam daquele lugar, que estavam conscientes de seus direitos sobre suas terras e sobre a memória de seus antepassados assassinados, gravemente desrespeitada pelo parque e pelo restaurante. Abaixo, o ofício escrito por elas em próprio punho, dirigido à Funai e ao Ministério Público:
“Declaramos à vossa excelência que nós da comunidade Kuzug Lávan iremos permanecer nesse local da gruta do tigre, onde nossos ancestrais morreram nesse local mortos por bugreiros. Então os espíritos ancestrais chamaram nós pra estar nesse local para juntos com eles lutar pelos nossos direitos, cujo a maior parte dos ossos mortais sendo devidamente esbanjado como um troféu, sendo exposto nossos ancestrais, os espíritos falaram para nós que estão sofrendo com tudo isso diariamente, sendo assim estamos pedindo para vossa excelência um pedido de socorro.”
Eu gostaria de terminar este artigo dizendo que os Xokleng conseguiram se mobilizar para impedir a expulsão das duas famílias que bravamente se levantaram para exigir respeito e justiça à sua memória, ao seu passado e ao seu presente. Porém, não foi assim. No dia 25 de abril de 2023, foi realizada a reintegração de posse do Parque Municipal da Gruta do Tigre. O vídeo que registra a ação mostra o quão desproporcional foi o aparato policial e militar mobilizado para retirar do estacionamento do Parque Municipal duas famílias compostas majoritariamente por idosos, crianças e mulheres, todos desarmados.
Na decisão de reintegração de posse da juíza federal substituta Lilian Bianchi Pfleger, há a proibição de ingresso de novos indígenas sem autorização prévia do Município de Rio do Oeste, no local. O prefeito comemora em suas redes sociais: “vencemos mais essa batalha”, acompanhado por palminhas e comentários dos moradores “Obrigado prefeito, Deus é mais”, “Parabéns prefeito, que Deus abençoe!!!”, “A gruta é nossa!! Parabéns prefeito”, “Nossa senhora de Aparecida não ia deixar de atender nosso apelo”, etc.
Podemos dizer que, em todo esse episódio, o comportamento da população não indígena (desde a exposição das ossadas até as diferentes reações à retomada), é uma caricatura do poder monárquico absolutista. Os brancos se colocam em posição de poder absoluto, não só desrespeitando as leis, como espetacularizando seus crimes, agindo impunemente e tratando o “outro”, o não branco, como um “não ser”, desprovido de direitos, de agência, de subjetividade, de história, de memória.
A história da Retomada da Gruta do Tigre, com todos os seus desdobramentos, é o retrato perfeito de como a estrutura de poder racista e colonial, seu imaginário e formas de operação permanecem vivos no Brasil, e se reproduzem em cada pequena cidade. Felizmente, os povos indígenas, como os Xokleng, se recusam a servir como objetos de museu, mitos ou lendas. Estão vivos e enfrentando os bugreiros dos nossos dias. Ainda que tenham perdido essa batalha, a guerra está longe de terminar.
—
Hoje, Joselina e sua família se recusam a sair de Rio do Oeste. Porém, ela não consegue mais vender artesanatos na praça e seu marido não consegue trabalho em lugar nenhum, pela discriminação que estão sofrendo. Até mesmo o mercado local está se recusando a vender para eles. Quem puder e quiser apoiar a luta dessas famílias, é possível fazer um pix em nome de Joselina W Patte: 47997026224
Para saber mais/ Referências
– Reportagem da Pública sobre o caso: https://apublica.org/2023/04/indigenas-xokleng-denunciam-clima-de-terror-respaldado-por-autoridades-em-sc/
– Histórico e dados sobre a Terra Indígena Xokleng Laklãnõ: https://cimi.org.br/2020/10/xokleng-laklano-luta-terra-indigena-pode-ser-marco-reparacao-historica/ e https://terrasindigenas.org.br/pt-br/terras-indigenas/3682
– Histórico e dados sobre o povo indígena Xokleng: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Xokleng
– Os trechos dos Boletins de Ocorrência citados foram retirados do Despacho de Reintegração de Posse expedido pela 1a Vara da Justiça Federal de Rio do Sul em favor da prefeitura de Rio do Oeste – Disponível em: https://apublica.org/wp-content/uploads/2023/04/1_Decisao_Indigenas-Xokleng-denunciam-clima-de-terror-respaldado-por-autoridades-em-SC.pdf
– Reportagens da RBA Alto Vale: (22/03) https://www.youtube.com/watch?v=M5oIx8dGaQY ; (14/04) https://www.youtube.com/watch?v=0Drqf2-9pz0 ; (17/04) https://www.youtube.com/watch?v=0fPGpFfizxE
– Postagem da Prefeitura de Rio do Oeste em comemoração à reintegração de posse: https://www.instagram.com/p/CreCRakvC8B/
– Link com o projeto de pesquisa arqueológica da UFSC na Gruta: https://territorialidadesamerindias.ufsc.br/historia-de-um-vale/ e fotos da escavação em 2018: https://www.flickr.com/photos/leiaufsc/sets/72157698686134325/