A importância dos povos indígenas e dos seus territórios na vida nacional tem sido subestimada em função de distorções históricas presentes na consciência dos brasileiros sobre nosso país pluriétnico. Uma dessas distorções, a “mentalidade estatística”, supõe que como os indígenas seriam numericamente poucos, sua importância seria insignificante. Outra, mais grave, a “mentalidade evolucionista”, associa os indígenas ao passado e, portanto, a sua presença contemporânea como algo de importância apenas “residual”.
Falácia. Apesar de serem numericamente poucos em relação às demais categorias censitárias do IBGE, os indígenas são, dessas categorias, a que mais tem crescido proporcionalmente, censo a censo. Inevitável considerar que os indígenas são parte não só do passado mas, do presente e do futuro do país. Essa dimensão de importância cresce ainda mais se considerarmos que as Terras Indígenas, demarcadas ou não – mas, em qualquer caso, garantidas por lei – ocupam parcela considerável do território nacional, destacadamente na Amazônia mas não apenas lá, e que cumprem um papel preponderante na conservação de recursos naturais e no equilíbrio, climático inclusive, do planeta.
Desde o alinhamento de uma “nova ordem mundial” na década de 1990, e ainda mais após a crise econômica global ao final da de 2010, o Brasil é um país que se desindustrializa. Dramaticamente, o lugar reservado ao país na nova ordem econômica global é o de produtor de ‘commodities’ agroindustriais e minerais altamente predatórias e desgastantes de solo, de água, de eletricidade e de vidas. Soja, derivados da pecuária bovina, biocombustíveis, minério de ferro pré-processado e alumínio são todos produtos que, muito rapidamente, devoram a qualidade dos solos, consomem e poluem as águas. Em alguns casos como o da indústria de alumínio, consomem eletricidade em escala exorbitante, também com altíssimo custo para o nosso patrimônio hídrico. A produção desses itens a baixo custo para o mercado global exige que também sejam produzidos a baixo custo, ou seja, sem investimentos em conservação dos solos e das águas.
O modelo exige, pois, que se avance cada vez mais sobre áreas ainda preservadas, derrubando florestas e invadindo espaços ainda protegidos e ocupados por comunidades tradicionais, os quais, em poucos anos, estarão também degradados e improdutivos. O modelo é também altamente concentrador de renda e de poder, o que pode ser constatado no perfil dos principais grupos políticos ora no poder: representantes do chamado agronegócio, das grandes mineradoras e do capital financeiro especulativo. Trata-se de uma elite sem compromissos com a nacionalidade, mas apenas com seus próprios lucros exorbitantes, garantidos por esse esquema altamente predatório de produção de ‘commodities’ que o resto do mundo (América do Norte, Europa e Oriente) demanda e compra a custos vantajosos e com o ganho adicional de “terceirizarem” os altos custos ambientais e territoriais disso.
Que forças são capazes de se opor a tudo isso? É urgente retomar e atualizar as estratégias de luta do aguerrido movimento sindical operário das décadas de 70 e 80 para um enfrentamento que requer uma nova práxis, uma concepção da luta de classes que ultrapasse o corporativismo.
Nesse cenário, intelectuais progressistas e bem informados frequentemente nos indagam: por que esse regime “de direita” está tão empenhado em atacar os direitos constitucionais dos povos indígenas e de outras comunidades tradicionais (quilombolas, ribeirinhos, pescadores e agricultores familiares etc.)? Será que o fazem apenas porque são, de fato, extremamente racistas e intolerantes?
Evidentemente não é apenas esse o motivo. Se a nossa legislação de proteção das Terras Indígenas e de outras comunidades tradicionais fosse efetivamente cumprida e aplicada, juntamente com a legislação de proteção e conservação ambiental, cerca de 40% do território nacional estaria protegido em terras fora do mercado. Sim! Cada vez que se demarca uma Terra Indígena, ou quilombola, ou que se cria uma reserva extrativista, ou uma unidade de conservação é uma fatia de território que se retira do mercado e que se preserva da sanha do capital especulativo que alimenta e reproduz o modelo econômico altamente predatório acima descrito. E tal não significa que essas Terras fiquem improdutivas, muito pelo contrário. Já foi sobejamente demonstrado que a agricultura de base familiar e mesmo os modos mais tradicionais de exploração podem ser muito produtivos – e não só de alimentos – e, melhor, que podem sê-lo de modo sustentável e com distribuição da riqueza gerada mais justa.
Evidentemente não se trata de tentar reproduzir, em alta escala, esses modelos tradicionais, inclusive porque isso não seria necessário para a produção em volume satisfatório dos principais itens básicos do nosso consumo diário.
Concretamente, porém, os povos indígenas e outras comunidades tradicionais são, hoje, protagonistas do enfrentamento ao modelo predatório e concentrador dominante. Tal confronto acontece seja pelo embate territorial direto de que são capazes, bloqueando ou retardando, de fato, essa expansão predatória; seja pelo capital moral e simbólico que detém, acionam e inspiram nesse enfrentamento. Recentemente um conjunto de organizações indígenas sul-americanas acionou judicialmente, por perdas e danos, com grande repercussão na mídia internacional, a maior rede de supermercados da Europa ocidental, por sua cumplicidade, expressa em parcerias comerciais, com grandes empresas pecuárias responsáveis por desmatamentos na Amazônia.
Já é hora de setores políticos ditos “progressistas” e empenhados na construção de alternativas justas e sustentáveis de desenvolvimento para o país incorporarem de forma efetiva em suas ações a agenda dos povos indígenas e de outras comunidades tradicionais. Os setores ditos “conservadores”, as elites em nada comprometidas de fato com o bem-estar dos brasileiros, claramente já se deram conta dessa importância. Aliás, não é outra a razão pela qual, estando no controle do aparelho de Estado, investem contra esses povos e comunidades pela guerra de destituição de direitos conquistados e pelo criminoso desaparelhamento dos organismos estatais de gestão indigenista, ambiental e agrária.
O que nos resta? Demandar ao Poder Judiciário, muitas vezes impregnado de rituais burocráticos e ingerências políticas e pautar a mídia, cujos interesses econômicos concorrem com sua legítima função social: priorizar o valor notícia do que impacta a vida da sociedade, as demandas coletivas e os direitos humanos.
Por ouro lado, acreditamos na resistência histórica desses povos que insistem na luta pelo Bem Viver, denunciando o genocídio e os crimes que dizimam milhões há séculos. E assim, como disse Caetano Veloso, “impávidos que nem Muhammad Ali” lutam com as armas que possuem, usando as novas tecnologias da informação, o acesso à formação acadêmica e a organização política incluindo jovens, mulheres e idosos.
Salvador, Junho de 2019.