Na noite anterior ao incêndio que o matou, no início do mês, o dramaturgo José Celso Martinez Corrêa, do Teatro Oficina, trabalhava no projeto que descreveu como o mais importante de sua existência: uma adaptação de “A queda do céu”, do xamã ianomâmi Davi Kopenawa e do antropólogo Bruce Albert. Misto de autobiografia, descrição dos impactos da invasão do “povo da mercadoria” e cosmogonias ianomâmis, o livro só cresceu em influência desde sua publicação, em 2010.
Parceiro do dramaturgo no projeto, Roderick Himeros conta que Zé Celso fazia questão de que a peça fosse protagonizada por indígenas. Brancos só interpretariam garimpeiros, missionários e funcionários da Funai, conta Himeros.
— Desde a Tropicália, Zé Celso buscava descolonizar os corpos e a cultura. Essa busca desembocou na cultura indígena — afirma.
A aproximação de Zé Celso do pensamento indígena não só comprova que, até o fim da vida, o diretor soube identificar de onde sopravam os ventos de renovação da arte brasileira. Também é indício do crescente diálogo entre as artes e as culturas dos povos originários. Do teatro às artes plásticas, do audiovisual à literatura.
A adaptação de “A queda do céu” ainda não tem data de estreia. De todo modo, não será a primeira ocupação indígena de um dos espaços cênicos mais tradicionais de São Paulo. Em maio, o Theatro Municipal apresentou uma versão da ópera “O guarani”, de Carlos Gomes, idealizada pelo pensador Ailton Krenak. Os protagonistas, o guarani Peri e branca Ceci, foram interpretados pelos atores indígenas Davi Vera Popygua Ju e Zahy Tentehar (os tenores Atalla Ayan e Enrique Bravo e as sopranos Nadine Koutcher e Débora Faustino ficaram responsáveis pela cantoria). Um coro guarani também subiu ao palco.
Para Zahy Tentehar, o mérito da nova encenação de “O guarani” foi não tratar os indígenas como meros figurantes e incluí-los nos processos criativos.
Saudada por Zé Celso como a “nova Cacilda Becker”, Zahy também é artista plástica e interpretou a vilã Débora na segunda temporada da série “Cidade invisível”, da Netflix. Inspirada no folclore nacional, a série foi inicialmente criticada pela falta de representatividade indígena, mas acertou o passo na segunda temporada (a cineasta Graciela Guarani dirigiu alguns episódios). Zahy também aparecerá na série “Americana”, do Starplus, prepara o monólogo teatral “Azira’i” e, com Felipe Bragança, vai dirigir uma nova versão do “Macunaíma”, clássico modernista de Mário de Andrade inspirado em culturas indígenas. Ela explica que o trabalho do atriz indígena é de constante “negociação”.
— Não queremos só cumprir a cota da diversidade. Meu coração só vai se acalmar quando puder interpretar uma personagem que não seja definida apenas como indígena — diz.
A representação indígena no audiovisual tem, de fato, aumentado e se distanciado dos estereótipos do passado (“bom selvagem”, excessivamente sexualizado ou simplório). Em maio, “A flor do buriti”, filme de João Salaviza e Renée Nader Messora em parceria com o povo krahô, foi premiado em Cannes. No ano que vem, chega aos cinemas “O casamento”, de Maíra Bühle, sobre Diacuí, primeira indígena a se casar com branco no Brasil. A safra de documentários também deve aumentar, com “Mundurukânia”, de Aldira Akay, Beka Munduruku e Rilcélia Akay, sobre a luta dos munduruku, e “O contato”, de Vicente Ferraz, que retrata três famílias de povos originários.
Novas cores e letras
Artistas indígenas também vêm conquistando espaço em museus e galerias. Entre as 120 atrações da 35ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo, que começa em setembro, há 17 indígenas. A SP-Arte: Rotas Brasileiras, que acontece entre 30 de agosto e 3 de setembro, também na capital paulista, vai expor artistas indígenas como Carmézia Emiliano, Duhigó e o coletivo MAHKU. A 22ª Bienal Sesc_Videobrasil já confirmou nomes como Antonio Pichillá Quiacaín e Seba Calfuqueo. O Masp tem dedicado o ano a “Histórias indígenas”, título de uma mostra marcada para outubro. A instituição tem três curadores indígenas: Edson Kayapó, a Kássia Borges Karajá e a Renata Tupinambá.
— A arte indígena trouxe frescor às instituições, novas linguagens estéticas e maneiras diferentes de enxergar o outro. Nós, indígenas, nunca nos esquecemos do outro — diz Kássia, que acrescenta que, diferentemente dos ocidentais, os povos originários não separaram a vida da arte, que, por sua vez, é tratada como um instrumento de cura.
A escritora Rita Carrelli percebeu isso desde cedo. Filha de antropólogos, ela cresceu em aldeias e se encantou com os rituais que organizam a vida comunitária, como a reclusão das meninas da primeira menstruação até o Kuarup, festa dos mortos observada no Alto Xingu. Organizadora dos livros de Ailton Krenak, Rita venceu o Prêmio São Paulo de Literatura de 2022 com o romance “Terrapreta” (Editora 34), que narra a imersão da adolescente Ana numa aldeia do Xingu após a morte da mãe.
“Terrapreta” faz parte de uma fornada de ficções recentes inspiradas nas culturas indígenas, como “A repetição”, de Pedro Cesarino e “O som do rugido da onça”, de Micheliny Verunschk. O diálogo com os povos nativos também orienta a edição da revista literária “Granta” que será lançada esta semana.
Rita Carello lembra que a aprovação da Lei nº 11.645, que tornou obrigatório o ensino das história indígena e afro-brasileira nas escolas contribuiu para a publicação de livros que dialogam com as culturas originárias. Mas há outras razões:
— A pressão do colapso climático e o esgotamento do pensamento ocidental tem levado à descoberta de outras epistemologias, que concebem a vida de outra forma — diz ela, que relaciona o aumento da representação à ascensão das lutas dos povos originários por direitos.
Zahy Tentehar concorda. E acrescenta:
— Hoje o nosso arco e flecha é a caneta.