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Indígenas pedem devolução de peças de 800 anos que estão em museu

Peças que foram escavadas nos anos 80 Crédito: Carlos Etchevarne/Pesquisa

Aos olhos do povo tuxá, há muita memória a ser recuperada. Em 1988, as terras antes habitadas por esses indígenas foram engolidas pela construção da barragem de Itaparica, no norte da Bahia. Na época, o que eles não conseguiram salvar se perdeu na água ou virou peça de museu.

Mais de três décadas depois, os tuxá pedem a volta dos fragmentos arqueológicos que foram salvos. São materiais com até mais de 850 anos, entre eles restos ósseos de antepassados deles, guardados na reserva técnica do Museu de Arqueologia e Etnologia (Mae) da Universidade Federal da Bahia (Ufba).

O conjunto tuxá é uma das quatro coleções etnológicas da instituição, aberta em 1983 dentro do prédio da Faculdade de Medicina da Bahia, no Largo Terreiro de Jesus, em Salvador. O espaço está a 600 quilômetros dos territórios onde se concentram os tuxá.

Em junho do ano passado, lideranças dessa etnia tiveram a última reunião para conversar sobre o retorno das 13 peças que estão no museu — a quantidade pode estar subestimada ou não incluir os artefatos danificados pelo tempo, segundo fontes ouvidas pela reportagem.

O encontro, que repercutiu em pressão a órgãos públicos, era resultado de uma iniciativa de Carlos Etchevarne. O antropólogo e antigo diretor do museu da Ufba tinha recebido, pouco tempo antes, um e-mail de uma jovem indígena tuxá com questionamentos sobre os artigos preservados na instituição.

O argentino radicado em Salvador era a pessoa certa a ser procurada. Nos anos 80, ele foi um dos arqueólogos que participaram das escavações realizadas onde viviam os tuxá.

A cidade de Rodelas foi um dos sete municípios inundados pela barragem construída pela Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf). Por isso, a empresa era obrigada a efetuar identificação de sítios arqueológicos antes que a água expulsasse memórias e moradores.

Os desterrados se dispersaram por outros estados e pela Bahia, principalmente para Ibotirama e Nova Rodelas (construída próxima da antiga Rodelas). Os arqueólogos, enquanto isso, retiravam da terra os vestígios do passado.

No trabalho, executado entre 1985 a 1988, os forasteiros analisaram ambientes naturais diferentes, como várzeas e dunas. Logo eles se depararam com pedrinhas que se revelaram restos humanos depositados em diferentes posições; vestígios de carvões de uma fogueira do século 13; cachimbos de barro utilizados em práticas religiosas e sociais; e cerâmicas diversas.

“A Ufba sempre teve interesse na volta dos materiais coletados à área de origem”, conta Carlos Etchevarne, “mas não existia um pedido”. Quando questionaram o destino desse material, é porque os tuxá viviam um momento de retomada da própria história.

A busca pelo passado perdido

Desde criança, Alice Arfer Apako, 22, era incentivada a conhecer suas origens. Historiadores e antropólogos iam e viam do território, e ela tirava quantas dúvidas pudesse. Sozinha, também fazia pesquisas. “Aí me deparei com um artigo de Carlos [Etchervane]”, lembra a estudante de Medicina da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs).

No rodapé da publicação que falava sobre achados arqueológicos na terra tuxá, estava o e-mail do professor. Ela decidiu se apresentar. “Sou Alice, indígena curiosa sobre a escavação feita nos sítios ancestrais do meu povo. Esses materiais foram levados para algum museu?”, perguntou ela ao professor, no dia 9 de janeiro do ano passado.

Alice e o avô, em Rodelas Crédito: Acervo Pessoal

A jovem sabia da existência de artefatos arqueológicos onde morava, mas não que alguns deles estavam em Salvador. Não demorou nem um dia para que Carlos retornasse à estudante.

Na resposta, ele disse “estar feliz pelo interesse” dela nas peças escavadas, e contou que, no passado, a Chesf até havia se comprometido a construir um museu próximo das novas moradias tos tuxá. Terminada a barragem, a promessa não se cumpriu.

“Houve tentativas de retornar essa ideia, mas não houve interesse da empresa”, contou Carlos à reportagem. A Chesf nega.

“Temos profundo respeito pela história e cultura dos povos tradicionais. A criação de museus para abrigar materiais resgatados em projetos arqueológicos só é viável quando existe uma instituição que se responsabiliza pela guarda permanente, gestão e manutenção dos acervos”, respondeu a empresa, por nota.

1) Machados polidos e 2) Fragmentos de cachimbos Crédito: Carlos Etchevarne/Pesquisa

Sem qualquer expectativa de que um plano de museu em Nova Rodelas saísse do papel tantos anos depois das escavações, Carlos procurou o antropólogo Felipe Tuxá, por coincidência primo de Alice, para conversar sobre o e-mail da estudante.

Há pouco menos de um ano, Felipe, de 34 anos, tinha começado a trabalhar na universidade como o primeiro professor autodeclarado indígena do departamento de Antropologia.

Três dias depois daquele papo, os colegas Carlos e Felipe organizaram a primeira de duas reuniões sobre o assunto. Alice não pôde participar dos encontros, por estar em Nova Rodelas.

“A primeira coisa que queríamos era levar Carlos à comunidade, mas isso foi se desdobrando. Eu sou antropólogo e professor e não sabia que esse acervo existia. Imagine… Nós, do sertão, sempre estivemos distantes do que acontecia em Salvador”, afirma Felipe.

Ao descobrir a existência das peças no museu da Ufba, ele tentou ir duas vezes visitá-las. Deu de cara com a porta. Alice também nunca viu o material. “O momento é de empenho para que tenhamos autonomia, que pensemos o que queremos fazer com essas peças, muitas vezes coletadas de modo unilateral”, acredita Felipe.

A Ufba, no entanto, não poderá decidir o futuro desses artefatos. Todo material arqueológico, ou seja, vestígios, bens e outros indícios da evolução no planeta, é de posse do Estado, neste caso representado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Instituições que reservem essas peças tem apenas a guarda temporária delas.O Iphan não detalhou em que fase está a avaliação do pedido, mas afirmou querer marcar uma reunião com líderes tuxá e com a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) sobre a proposta de construção de um memorial para receber o material arqueológico. Ainda não há data. A Funai não respondeu.

A reportagem tentou contato, ao longo da última semana, com a diretora do MAE, a antropóloga Luciana Messeder Ballardo. As perguntas enviadas pela publicação não foram respondidas.

Um sítio arqueológico a se revelar

O plano dos tuxá é que o material arqueológico reservado no museu fique em D’zorobabe, território considerado sagrado por eles e vizinho à aldeia mãe inundada pela barragem. A partir de 2017, eles voltaram a ocupar essa terra, avarandada pelo Rio São Francisco, em um movimento de “autodemarcação”.

No acordo realizado entre a Funai e a Chesf, o reassentamento dos Tuxá deveria ter sido finalizado em 30 de dezembro de 1987, o que nunca aconteceu. A família de Alice, a jovem que deu o pontapé inicial para o possível retorno das peças centenárias, foi uma das que passaram a viver no que chamam de Aldeia Avó, onde agora moram 220 famílias.

A possível locação do material arqueológico em Zorobabel também pode incentivar novos achados sobre as marcas deixadas por lá: o local é um sítio arqueológico, o que se pode notar mesmo sem as pás, escovinhas e picaretas usadas por arqueólogos.

Indígenas Tuxá no território Dzorobabé Crédito: APIB/Divulgação

Durante banhos no Rio São Francisco, indígenas já se depararam com objetos como cacos de cerâmica e pontas de flechas.

Em outubro do ano passado, a arqueóloga Cleonice Vergne, que promove pesquisas com os tuxá, auxiliou os indígenas na solicitação feita ao Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia para que se reconheça o D’zorobabe como sítio arqueológico estadual.

Para os tuxá, se convencerem o governo, é possível que o retorno dos achados que estão na Ufba seja facilitado. Em abril deste ano, técnicos do Ipac visitaram Nova Rodelas para coletar informações. A solicitação dos tuxá, no entanto, ainda está em análise.

Para os tuxá, levar o material arqueológico hoje guardado no Museu ao D’zorobabe é comprovar a existência dos tuxá, e dar força ao pleito da demarcação. “Esses achados mostram que somos daqui, que sempre estivemos. Esses materiais são sagrados e nossos elos com os mais antigos”, acredita Alice Arfer.

Em 1561, a existência de povos indígenas nas margens do Rio São Francisco aparece pela primeira vez na literatura. No início do século 17, falava-se em “um índio Rodela”, famoso por ter liderado 200 indígenas que lutaram contra os holandeses e mataram 80 inimigos. Esse guerreiro foi batizado, no português, como Francisco Rodela.

Segundo os escritos do padre jesuíta português Serafim Leite, foi por causa de Francisco que os indígenas da região ficaram conhecidos como “índios rodeleiros”. A origem desse nome se perdeu no tempo, mas os indígenas fincaram raízes por lá, com outros episódios de migração forçada, devido a pressões externas.

No fim do século 19, por exemplo, alguns tuxás que buscavam novas áreas para plantar seguiram Antônio Conselheiro e foram mortos na Guerra de Canudos.

Devolução de peças tem precedentes

Se os achados arqueológicos forem devolvidos aos indígenas baianos, não será a primeira vez que isso acontece na história dos museu universitários.

Em 1987, os indígenas Krahô, habitantes de aldeias no Tocantins, solicitaram a devolução de um machado considerado sagrado que estava no Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP).

A universidade, depois de meses de negociação, devolveu o objeto por meio de uma concessão, mas permanece com a propriedade do machado, até que seu status de Patrimônio Nacional seja declarado pelo Iphan. Como isso ainda não aconteceu, os krahô voltaram a usar o artefato como antes, em cerimônias religiosas.

Professor do departamento de Antropologia e Etnologia e Diretor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Ufba, Marcelo Moura Mello propõe uma questão sobre a devolução de objetos arqueológicos e outros artefatos de povos indígenas: “Eles contam histórias, sim, mas quem está contando essa história através dos objetos?”.

“Uma coisa é ter sua história contada a partir de algo”, responde o doutor em Antropologia social, “e outra é contar sua história a partir desses objetos, que muitas vezes podem ser concebidos de formas distintas daquilo que consideramos como objetos, o que muitas vezes não é apreendido pela maioria das pessoas”.

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